Tucarondono
Espiritismo Retrospectivo
A MEDIUNIDADE NO COPO D’ÁGUA EM 1706

(Em casa do duque de Orléans)

Pode-se compreender, sob o título geral de Espiritismo retrospectivo, os pensamentos, as doutrinas, as crenças e todos os fatos espíritas anteriores ao Espiritismo moderno, isto é, até 1850, época na qual começaram as observações e os estudos sobre essas espécies de fenômenos. Não foi senão em 1857 que tais observações foram coordenados em corpo de doutrina metódica e filosófica. Esta divisão nos parece útil à história do Espiritismo.

O fato seguinte é relatado nas Memórias do duque de Saint-Simon:32

“Lembro-me também de uma coisa que ele (o duque de Orléans) me contou no salão de Marly, quando de sua saída para a Itália, cuja singularidade, verificada pelo acontecimento, leva-me a não a omitir. Ele era curioso por todas as sortes de artes e de ciências e, com muitíssimo espírito, tivera em toda a sua vida a fraqueza tão comum na corte dos filhos de Henrique II, que Catarina de Médicis tinha, entre outros males, trazido da Itália. Tanto quanto era possível, ele tinha procurado ver o diabo, sem o ter conseguido, conforme me disse muitas vezes, e ver coisas extraordinárias e saber o futuro. La Sery tinha em casa uma filha de oito ou nove anos, aí nascida e que daí nunca havia saído, e que tinha a ignorância e a simplicidade dessa idade e dessa educação. Entre outros velhacos de curiosidades ocultas, dos quais o Sr. duque de Orléans tinha visto muitos em sua vida, apresentaramlhe um que pretendia fazer ver, num copo cheio d’água, tudo quanto se quisesse saber. Ele pediu a alguém jovem e inocente para aí olhar, e essa pequena foi julgada adequada. Então se divertiram em querer saber o que se passava naquele momento em dois lugares afastados, e a menina via e descrevia o que estava vendo. Aquele homem pronunciava baixinho alguma coisa sobre o copo d’água e logo aí olhavam com sucesso.

“Os embustes de que tantas vezes tinha sido vítima o duque de Orléans, levaram-no a uma prova que pudesse tranqüilizá-lo. Ordenou baixinho, ao ouvido de um de seus servos, que fosse imediatamente à casa da Sra. Nancré, ali examinasse quem estava, o que fazia, a posição e o mobiliário do quarto, bem como a situação de tudo que ali se passava e, sem perder um instante, nem falar a ninguém, vir dizer-lhe ao ouvido. Num abrir e fechar de olhos a missão foi executada, sem que ninguém se apercebesse do que era, permanecendo a menina sempre no quarto. 32 Ver o número de junho de 1868. Desde que o Sr. duque de Orléans foi informado, pediu à menina que visse quem estava em casa da Sra. de Nancré e o que ali se passava. Logo ela lhe contou palavra por palavra tudo o que tinha visto o enviado do Sr. duque de Orléans. A descrição do rosto, das figuras, das roupas, das pessoas que ali estavam, sua situação no quarto, as pessoas que jogavam em duas mesas diferentes, as que olhavam ou conversavam, sentadas ou de pé, a disposição dos móveis, numa palavra, tudo. Num instante o Sr. duque de Orléans lá mandou Nancré, que relatou ter encontrado tudo como a menina havia dito e como o lacaio que lá tinha estado havia contado ao ouvido do Sr. duque de Orléans.

“Ele quase não me falava dessas coisas, porque eu tomava a liberdade de o envergonhar. Tomei a de o injuriar neste caso e de lhe dizer que julgava poder desviá-lo de ter fé e se divertir com esses sortilégios, sobretudo numa ocasião em que ele devia ter o espírito ocupado com tantas coisas importantes. ‘Isto não é tudo, disse-me ele, e não vos contei isto senão para chegar ao resto.’ E, imediatamente, contou-me que, encorajado pela exatidão do que vira a menina no quarto da senhora de Nancré, ele quisera ver algo de mais importante, e o que se passaria à morte do rei, mas sem pesquisar a data, que não se podia ver no copo. Então perguntou de chofre à menina, que jamais ouvira falar de Versalhes, nem visto ninguém da corte, senão ele. Ela olhou e lhe explicou demoradamente tudo o que via. Fez com exatidão a descrição do quarto do rei em Versalhes e o mobiliário que, de fato, ali se achava por ocasião de sua morte. Ela o descreveu perfeitamente em seu leito, e que se achava no quarto, perto da cama, um menino comportado, seguro pela senhora de Ventadour, com o que gritou, porque a tinha visto na casa da senhorita de Sery. Ela lhes deu a conhecer madame de Maintenon, o rosto singular de Fayon, a Sra. duquesa de Orléans, a Sra. duquesa e a Sra. princesa de Conti; gritou ao Sr. duque de Orléans; numa palavra, deu-lhe a conhecer o que ali via de príncipes, de senhores, de domésticos, de lacaios. Quando acabou de dizer tudo, surpreso por que ela não lhe tinha referido ‘Monseigneur’, monsenhor o duque de Bourgogne, monsenhor o duque de Berry, perguntou-lhe se não via tais e tais figuras. Ela respondeu constantemente que não e repetiu as que via. Era o que o Sr. duque de Orléans não podia compreender e de que se admirou muito comigo, em vão procurando a razão.

“O acontecimento o explicou. Estava-se, então, em 1706. Os quatro estavam então cheios de vida e de saúde, e os quatro tinham morrido antes do rei. Foi a mesma coisa com o Sr. príncipe, com o Sr. duque e o Sr. príncipe de Conti, que ela não viu, enquanto viu os filhos dos dois últimos, o Sr. du Maine, os seus, e o Sr. conde de Toulouse. Mas até o acontecimento isto ficou na obscuridade. Terminada esta curiosidade, o Sr. duque de Orléans quis saber o que aconteceria consigo. Então não foi mais o copo d’água. O homem que lá estava ofereceu-lhe para lhe mostrar, como se pintado na parede da sala, desde que ela não tivesse medo de ver; e ao cabo de um quarto de hora de algumas afetações diante de todos, a figura do Sr. duque de Orléans, vestido como estava então e em tamanho natural, apareceu de repente na parede, como em pintura, com uma coroa na cabeça. Nem era da França, nem da Espanha, nem da Inglaterra, nem imperial; o Sr. duque de Orléans, que a considerou com os olhos arregalados, jamais pôde adivinhála e jamais tinha visto uma semelhante; tinha apenas quatro círculos e nada no topo. Essa coroa lhe cobria a cabeça.

“Da obscuridade precedente e desta, aproveitei a ocasião para lhe mostrar novamente a vaidade dessas espécies de curiosidades, as justas ilusões do diabo, que Deus permite para punir curiosidades, que proíbe, o nada e as trevas que daí resultam, em vez da luz e da satisfação que nelas se buscam. Seguramente ele estava bem longe de ser regente do reino e de o imaginar. Talvez fosse o que lhe anunciava essa coroa singular. Tudo isto se passara em Paris, em casa de sua amante, em presença de sua mais estreita intimidade, na véspera do dia em que mo contou, e eu o achei tão extraordinário que aqui lhe dei lugar, não para o aprovar, mas para o registrar.”

A veracidade do duque de Saint-Simon é tanto menos suspeita quanto ele se opunha a essas espécies de idéias; não se pode, pois, duvidar que tenha registrado fielmente o relato do duque de Orléans. Quanto ao fato em si mesmo, não é provável que o duque o tivesse inventado ou exagerado. Os fenômenos que
se produzem em nossos dias, aliás, provam a sua possibilidade; o que, então, passava por algo de maravilhoso, é agora um fato muito natural. Certamente não se o pode levar à conta da imaginação da menina que, desconhecida do indivíduo, não lhe podia servir de comparsa. As palavras pronunciadas sobre o copo d’água não tinham, provavelmente, outro objetivo senão dar ao fenômeno uma aparência misteriosa e cabalística, segundo as crenças da época; mas podiam muito bem exercer uma ação magnética inconsciente, e isto com tanto mais razão quanto aquele homem parecia dotado de uma vontade enérgica. Quanto ao fato do quadro que ele fez aparecer na parede, até o momento não se lhe pode dar nenhuma explicação.

Aliás, a magnetização prévia da água não parece ser indispensável. Um dos nossos correspondentes da Espanha nos citava, há alguns dias, o seguinte fato, que se passara sob os seus olhos há cerca de quinze anos, numa época e numa região onde o Espiritismo era desconhecido e quando ele mesmo levava a incredulidade até os últimos limites. Em sua família tinham ouvido falar da faculdade que têm certas pessoas de ver numa garrafa cheia d’água, e a isso não ligavam mais importância do que às crendices populares. Não obstante, quiseram experimentar por curiosidade. Uma moça, após um instante de concentração, viu um parente dele, do qual fez o retrato exato; viu-o numa montanha, a algumas léguas dali, onde não podiam supor que estivesse, depois descer num barranco, subir de novo, fazer diversas idas e vindas. Quando o indivíduo regressou e lhe disseram de onde vinha e o que tinha feito, ficou muito surpreso, pois não havia comunicado a ninguém a sua intenção. Ainda aqui a imaginação está completamente fora de causa, porque o pensamento de nenhum dos assistentes podia agir sobre o espírito da moça.

Sendo a influência da imaginação a grande objeção que opõem a esse gênero de fenômenos, como a todos os da mediunidade em geral, não se poderiam colher com muito cuidado os casos em que é demonstrado que essa influência não se pode dar. O fato seguinte é um exemplo não menos concludente.

Outro assinante nosso de Palermo, na Sicília, esteve ultimamente em Paris; em sua ausência, a filha, que jamais veio a Paris, recebeu o número da Revista, onde se trata do copo d'água; quis experimentar, e seu desejo era ver o pai. Não o viu, mas viu várias ruas que, pela descrição que fez ao lhe escrever, ele reconheceu facilmente como sendo as ruas da Paz, Castiglione e Rivoli. Ora, essas ruas eram precisamente aquelas por onde ele havia passado no mesmo dia em que a experiência foi feita. Assim, aquela jovem senhora não vê o pai, que conhece, que deseja ver, sobre o qual concentra o pensamento, ao passo que vê o caminho que ele percorreu, e que ela não conhecia. Que razão dar a essa bizarrice? Os Espíritos nos disseram que as coisas se haviam passado dessa maneira para dar uma prova irrecusável de que a imaginação nada tinha a ver com o caso.

Pelas reflexões que seguem, completaremos o que temos dito sobre o mesmo assunto no número de junho.

O copo, com ou sem água, assim como a garrafa, evidentemente representam, neste fenômeno, o papel de agentes hipnóticos; a concentração da vista e do pensamento em um ponto provoca um maior ou menor desprendimento da alma e, em conseqüência, o desenvolvimento da visão psíquica. (Vide a Revista de janeiro de 1860: Detalhes sobre o hipnotismo.)

Esse gênero de mediunidade pode levar a modos especiais de manifestações, a percepções novas; é um meio a mais de constatar a existência e a independência da alma e, por isto mesmo, um assunto de estudo muito interessante; mas, como dissemos, seria erro pensar que aí esteja um meio melhor que outro de saber tudo quanto se deseja, porque há coisas que nos devem ficar ocultas, ou que não podem ser reveladas senão na ocasião certa. Quando é chegado o momento de as conhecer, fica-se sabendo por uma das mil maneiras de que dispõem os Espíritos, quer se seja ou não espírita; mas o copo d’água não é mais eficaz que um outro. Pelo fato de os Espíritos se haverem dele servido para dar conselhos salutares para a saúde, não se segue que seja um processo infalível para triunfar de todos os males, mesmo dos que não devem ser curados. Se uma cura for possível pelos Espíritos, estes últimos darão seus conselhos por um meio mediúnico qualquer e por qualquer médium apto para esse gênero de comunicação. A eficácia está na prescrição, e não na maneira por que é dada.

O copo d’água também não é uma garantia contra a intromissão dos Espíritos maus; a experiência já provou que os Espíritos mal-intencionados se servem desse meio como de outros para induzir em erro e abusar da credulidade. Em que seria possível opor-lhes um obstáculo mais poderoso? Temo-lo dito muitas vezes, e nunca o repetiremos em demasia: Não há mediunidade ao abrigo dos Espíritos maus, e não existe nenhum processo material para os afastar. O melhor, o único preservativo está em si próprio; é por sua própria depuração que se os afasta, como pela limpeza do corpo se preserva contra os insetos nocivos.

A REENCARNAÇÃO NO JAPÃO

São Francisco Xavier e o bonzo japonês

O relato seguinte é extraído da história de São Francisco Xavier, pelo padre Bouhours. É uma discussão teológica entre um bonzo japonês, chamado Tucarondono, e São Francisco Xavier, então missionário no Japão.

“Não sei se me conheces ou, melhor dizendo, se me reconheces, disse Tucarondono a Francisco Xavier. – Não me lembro de vos ter visto alguma vez, respondeu-lhe este.

“Então o bonzo, rebentando de riso, e se voltando para outros bonzos, seus confrades, que trouxera consigo: Bem vejo, disse-lhes, que não teria dificuldade em vencer um homem que tratou comigo mais de cem vezes, e que dá mostras de jamais me ter visto. Em seguida, olhando Xavier com um sorriso de desprezo: Nada te resta das mercadorias que me vendestes no porto de Frénasoma?

“Em verdade, replicou Xavier com uma expressão sempre serena e modesta, em minha vida não fui negociante e jamais estive em Frénasoma. – Ah! que esquecimento e que tolice! replicou o bonzo, fazendo-se de admirado e continuando suas risadas: – Que! é possível que tenhas esquecido isto? – Avivai-me a lembrança, prosseguiu docemente o Pai, vós que tendes mais espírito e mais memória que eu. – Bem que o quero, disse o bonzo, todo orgulhoso do elogio que Xavier lhe havia feito. Há exatamente mil e quinhentos anos, tu e eu éramos mercadores, fazíamos o nosso comércio em Frénasoma, e te comprei cem peças de seda muito barato. Lembras-te agora?

“O santo avaliou até onde queria chegar o bonzo e lhe perguntou, honestamente, que idade tinha. – Tenho cinqüenta e dois anos, disse Tucarondono. – Como é possível, redargüiu Xavier, que fosses mercador há quinze séculos, se não estais no mundo senão há meio século, e que negociássemos naquele tempo, em Frénasoma, se vós e a maioria dos outros bonzos ensinais que o Japão não passava de um deserto há mil e quinhentos anos?

“Escuta-me, disse o bonzo: tu ouvirás os oráculos e concordarás que temos mais conhecimento das coisas passadas, do que vós outros o tendes das coisas presentes.

“Deves, pois, saber, que o mundo jamais teve começo, e que as almas, a bem dizer, não morrem. A alma se desprende do corpo onde estava encerrada; busca outro, novo e vigoroso, onde renascemos, ora com o sexo mais nobre, ora com o sexo imperfeito, conforme as diversas constelações do céu e os diferentes aspectos da Lua. Essas mudanças de nascimento fazem que também mudem as nossas sortes. Ora, é a recompensa dos que viveram santamente ter a lembrança fresca de todas as vidas que se levou nos séculos passados e de se representar em si mesmo todo inteiro, tal qual se foi desde a eternidade, sob a forma de príncipe, de mercador, de homem de letras, de guerreiro e sob outras figuras. Ao contrário, quem quer que, como tu, saiba tão pouco seus próprios negócios, ignore o que foi e o que fez durante uma infinidade de séculos, mostra que seus crimes o tornaram digno da morte tantas vezes, que perdeu a lembrança das vidas que mudou.”

Observação – Não se pode supor que Francisco Xavier tenha inventado esta história, que não lhe era favorável, nem suspeitar da boa-fé de seu historiador, o padre Bouhours. Por outro lado, não é menos certo que era uma armadilha estendida ao missionário pelo bonzo, pois sabemos que a lembrança das existências anteriores é um caso excepcional e que, em todo o caso, jamais comporta detalhes tão precisos. Mas o que ressalta do fato é que a doutrina da reencarnação existia no Japão naquela época, em condições idênticas, salvo a intervenção das constelações e da Lua, às que hoje são ensinadas pelos Espíritos. Uma outra similitude não menos notável, é a idéia de que a precisão da lembrança é um sinal de superioridade; com efeito, os Espíritos nos dizem que nos mundos superiores à Terra, onde o corpo é menos material e a alma encontra-se num estado normal de desprendimento, a lembrança do passado é uma faculdade comum a todos; aí a gente se lembra das existências anteriores, como nos lembramos dos primeiros anos da nossa infância. É bem evidente que os japoneses não chegaram a este grau de desmaterialização, que não existe na Terra, mas o fato prova que dele têm a intuição.

R.E. , agosto de 1868, p. 342