Terra
O Espiritismo em Toda Parte
O JORNAL SIÈCLE – PARIS SONÂMBULA

Desde algum tempo o Siècle publica, sob o título de Toda Paris, uma série de folhetins muito interessantes, escritos por diversos autores. Houve Paris artista, Paris gastronômica, Paris contestadora, etc. Em seu folhetim dos dias 24 e 25 de abril de 1868, publicou Paris sonâmbula, pelo Sr. Eugène Bonnemère, autor do Romance do Futuro. É uma exposição ao mesmo tempo científica e verdadeira, das diferentes variedades de sonambulismo, na qual casualmente faz intervir o Espiritismo, sob seu próprio nome, embora com todas as precauções oratórias determinadas pelas exigências do jornal, cuja responsabilidade não queria comprometer. É o que explica certas reticências. Não nos permitindo a falta de espaço fazer citações tão numerosas quanto teríamos desejado, limitar-nos-emos às seguintes passagens:

“A forma mais elevada do sonambulismo é, sem contradita, o Espiritismo, que aspira a passar ao estado de ciência. Possui uma literatura já rica, e notadamente os livros do Sr. Allan Kardec, fonte autorizada sobre a matéria.”

“O Espiritismo é a correspondência das almas entre si. Segundo os adeptos dessa crença, um ser invisível se põe em comunicação com um outro, chamado médium, que goza de uma organização particular, que o torna apto a receber o pensamento dos que viveram, e que escreve, quer por um impulso mecânico inconsciente, imprimido à mão, quer por uma transmissão direta à inteligência dos médiuns.”

“Não, a morte não existe. É o instante de repouso após a jornada feita e a tarefa acabada; depois, é o despertar para uma nova obra, maior e mais útil do que a que acaba de realizar-se.”

“Partimos levando conosco a lembrança dos conhecimentos aqui adquiridos; o mundo para onde iremos nos dará os seus, e nós os gruparemos todos em feixe, para com eles formar o progresso.”

“É pela sucessão das gerações que a Humanidade avança, de cada vez dando mais um passo para a luz, porque chegam animadas por almas, sempre naturalmente puras, depois que voltaram a Deus, e ficam impregnadas dos progressos que atravessaram.”

“Em conseqüência das conquistas definitivamente asseguradas, a própria Terra que habitamos merecerá ascender na escala dos mundos. Acontecerá um novo cataclismo; certas essências vegetais, certas espécies animais, inferiores ou malfazejas desaparecerão, como outras desapareceram no passado, para dar lugar a criações mais perfeitas e, por nossa vez, nos tornaremos um mundo no qual os seres já experimentados virão buscar um maior desenvolvimento. Depende de nós apressar, pelos nossos esforços, o advento desse período mais ditoso. Nossos mortos bem-amados vêm ajudar-nos nessa difícil tarefa.”

“Sérias ou não, essas crenças não deixam de ter uma certa grandeza. O materialismo e o ateísmo, que o sentimento humano repele com todas as suas energias, não passam de uma inevitável reação contra as idéias, dificilmente admissíveis pela razão, sobre Deus, a Natureza e o destino das almas. Alargando a questão, o Espiritismo reacende nos corações a fé prestes a se extinguir.”

TEATRO – CORNÉLIO – O GALO DE MYCILLE

Neste inverno, no teatro das Fantasias Parisienses, foi encenada uma encantadora opereta intitulada O Elixir de Cornélio, na qual a reencarnação é o próprio cerne da intriga.

Eis o relato que dela nos deu o Siècle, em seu número de 11 de fevereiro de 1868:

“Esse Cornélio é um alquimista que se ocupa particularmente da transmigração das almas. Tudo quanto lhe contam a respeito ele escuta com ouvidos ávidos, como se a coisa tivesse acontecido. Ora, ele tem uma filha que não esperou sua permissão para arranjar um pretendente. Não; mas ele recusa o seu consentimento. Como fazer, então, para vencer a sua resistência? Uma idéia: o apaixonado lhe narra que sua filha, antes de ser sua filha, há muito tempo, era um lansquenê23, dado a aventuras e freqüentador de ruelas. Nessa mesma época ele, o apaixonado, era uma jovem encantadora, que foi enganada pelo aventureiro. Os papéis se inverteram e ele lhe pede para devolver a sua antiga honra. ‘Ah! vós me dizeis tanto!’ responde, convencido, o velho doutor. E eis como um casamento a mais se realiza diante do público, que tantas vezes se encarrega de substituir o Sr. prefeito.

23 N. do T.: Soldado alemão que, nos séculos XV e XVI, servia na França como mercenário.

“A música é alegre como o assunto que a inspirou. Notou-se mais particularmente a serenata, as quadras de Cornélio, o dueto cômico e o final, escritos simplesmente e facilmente.”

Como se vê, a trama repousa aqui, não apenas no princípio da reencarnação, mas, ainda, na mudança de sexo.

Os assuntos dramáticos se esgotam e muitas vezes os autores ficam embaraçados para sair dos lugares-comuns. A idéia da reencarnação vai oferecer-lhes, em profusão, situações novas para todos os gêneros; aberto o caminho, é provável que todos os teatros logo tenham sua peça sobre a reencarnação.

No fim de maio o Teatro Francês encenou uma peça na qual a alma representa o papel principal; é o Galo de Mycille, pelos Srs. Trianon e Eugène Nyon. Eis o enredo:

Mycille é um jovem sapateiro remendão de Atenas; em frente à sua tenda, mora um jovem magistrado, o arconte Eucrates, numa encantadora mansão de mármore. O pobre sapateiro inveja em Eucrates as suas riquezas, sua mulher, a bela Cloé, sua prima, seus numerosos escravos. O opulento arconte, envelhecido precocemente, tolhido pela gota, inveja em Mycille sua boa figura, sua saúde, o amor desinteressado que lhe dedica uma linda escrava, Doris. Mycille tem um galo que lhe deu a jovem Doris e que, por seu canto matinal, desperta o arconte. Este ordena aos escravos que batam no sapateiro, caso este não faça o galo calar-se; por sua vez o sapateiro quer bater no galo; mas nesse momento o animal se metamorfoseia em homem: é o filósofo Pitágoras, cuja alma viera animar o corpo do galo, segundo a sua doutrina da transmigração. Momentaneamente tomou sua forma humana para esclarecer Mycille sobre a tolice da inveja que ele tem da posição de Eucrates. Não podendo convencê-lo, lhe diz: “Dar-te-ei o meio de te esclareceres por tua própria experiência. Apanha esta pena que fizeste cair de meu corpo de galo; enfia-a na fechadura da porta de Eucrates: logo a porta se abrirá; tua alma passará para o corpo do arconte e, reciprocamente, a alma do arconte passará para o teu corpo. Contudo, antes de fazer qualquer coisa, aconselho-te a refletir bem. Então Pitágoras desapareceu. Mycille reflete, mas a sede do ouro o arrasta e, instigado por diversos incidentes, decidese e a metamorfose se opera. Eis, pois, o sapateiro transformado no rico arconte, mas doente e gotoso, e o arconte feito sapateiro. Essa transformação leva a uma porção de complicações cômicas, em conseqüência das quais cada um, descontente com a sua nova posição, retoma a que tinha antes.

Como se vê, essa peça é uma nova edição da história do sapateiro e do financista, já explorada sob tantas formas. O que a caracteriza é que, em vez de ser o sapateiro em pessoa, corpo e alma, que toma o lugar do financista, são as duas almas que mudam de corpo. A idéia é nova, original, e os autores a exploram espirituosamente. Mas não é absolutamente tomada da idéia espírita, como se havia dito; é tirada de um diálogo de Luciano: O sonho e o galo. Não falamos deste senão para realçar o erro dos que confundem o princípio da reencarnação com a transmigração das almas, ou metempsicose.

A peça de Cornélio, ao contrário, é inteiramente espírita, embora a pretensa reencarnação do jovem e da moça não passem de uma invenção de sua parte para chegar aos seus fins, enquanto esta dela se afasta por completo. Em primeiro lugar, o Espiritismo jamais admitiu a idéia da alma humana retrogradando na animalidade, porque seria a negação da lei do progresso; em segundo lugar, a alma só deixa o corpo com a morte. Quando, depois de algum tempo passado na erraticidade, recomeça uma nova existência, passa pelas fases ordinárias da vida: nascimento, infância, etc., e não por efeito de uma metamorfose ou substituição instantânea, que só se vê nos contos de fadas, que não são o Evangelho do Espiritismo, digam o que disserem os críticos, que dele pouco sabem.

Todavia, embora os dados sejam falsos na sua aplicação, não deixam de ser baseados no princípio da individualidade e da independência da alma; é a alma distinta do corpo e a possibilidade de reviver num outro envoltório posto em ação, idéia com a qual sempre é útil familiarizar a opinião. A impressão que daí fica não é perdida para o futuro e é mais salutar que a das peças onde se encenam a pouca vergonha das paixões.

ALEXANDRE DUMAS – MONTE-CRISTO

“Escutai, Valentin. Jamais sentistes por alguém uma dessas simpatias irresistíveis, que fazem que, em vendo uma pessoa pela primeira vez, julgais conhecê-la há muito tempo, e vos perguntais onde e quando a vistes, embora não vos podendo
recordar nem do lugar, nem do tempo, chegais a crer que foi num mundo anterior ao nosso, e que essa simpatia não passa do despertar de uma lembrança?” (Monte-Cristo, 3a parte, cap. XVIII, O recinto da luzerna.)

“Jamais ousastes vos elevar, num vôo, às esferas superiores que Deus povoou de seres invisíveis e excepcionais? – Admitis, senhores, que existam esferas superiores e que seres invisíveis se misturem conosco? – E por que não? Acaso vedes o ar que respirais, e sem o qual não poderíeis viver? – Então nós não vemos estes seres de que falais? – Sim; vós os vedes quando Deus permite que se materializem...” (Monte-Cristo, 3a parte, cap. IX, Ideologia.)

“E eu, senhor (Villefort), eu vos digo que não é assim como pensais. Esta noite eu dormi um sono horrível, porque de certo modo me via dormir, como se minha alma já estivesse planando acima de meu corpo; meus olhos, que me esforçava por abrir, se fechavam mau grado meu; e, contudo... com os olhos fechados, eu vi, no mesmo lugar onde estais, entrar sem ruído uma forma branca.” (Monte-Cristo, 4a parte, cap. XIII, senhora Mairan.)

“Uma hora antes de expirar, ele me disse: Meu pai, a fé de nenhum homem pode ser mais viva que a minha, porque vi e ouvi falar uma alma separada de seu corpo.” (François Picaut, continuação do Monte-Cristo.)

Nestes pensamentos não há senão uma crítica muito pequena a fazer: é a qualificação de excepcionais dada aos seres invisíveis que nos cercam. Tais seres nada têm de excepcional, já que são as almas dos homens, e que todos os homens, sem exceção, devem passar por esse estado. Afora isto, não se dirá que estas idéias são tiradas textualmente da doutrina?
R.E. , julho de 1868, p. 301