Sonambulismo
O Espiritismo em Toda Parte
JORNAL SOLIDARIEDADE

O Espiritismo conduz precisamente ao fim que se propõem todos os homens de progresso. É, pois, impossível que, mesmo sem se conhecer, eles não se encontrem em certos pontos e que, quando se conhecerem, não se dêem a mão para marchar em conjunto ao encontro de seus inimigos comuns: os preconceitos
sociais, a rotina, o fanatismo, a intolerância e a ignorância.

O Solidarité é um jornal cujos redatores levam seu título a sério. E que campo mais vasto e mais fecundo para o filósofo moralista do que esta palavra que encerra todo o programa do futuro da Humanidade! É por isso que esta folha, se não tem a popularidade das folhas leves, conquistou um crédito mais sólido entre os pensadores sérios.18 Embora até hoje ela não se tenha mostrado muito simpática às nossas doutrinas, não rendemos menos justiça à sinceridade de seus pontos de vista e ao incontestável talento de sua redação. É, pois, com viva satisfação que hoje a vemos, por sua vez, fazer justiça aos princípios do Espiritismo. Seus redatores nos farão também a de reconhecer que não fizemos nenhuma diligência para os trazer a nós. Sua opinião, portanto, não resulta de nenhuma condescendência pessoal.

Sob o título de: Boletim do movimento filosófico e religioso, o número de 1o de maio contém um artigo notável, do qual extraímos as passagens seguintes:

“A confusão vai aumentando sem cessar. Onde irá parar? Não é só em política que não se entendem mais; não é 18 Solidarité, jornal mensal de 16 páginas in-4, aparecendo no dia 1o de cada mês. Preço: Paris, 5 francos por ano; Departamentos, 6 francos; estrangeiro: 7 francos. Preço de um número: 25 centavos; pelos correios: 30 centavos. – Redação: rue des Saints-Pères, 13, na Livraria das Ciências Sociais. somente em economia social, é também em moral e em religião, de sorte que a perturbação se estende a todas as esferas da atividade
humana, que invadiu todo o domínio da consciência, e que a própria civilização está em causa.

“Não que a ordem material esteja em perigo. Há hoje na sociedade muitos elementos conquistados e muitos interesses a conservar, para que a ordem material possa nela ser seriamente perturbada. Mas a ordem material nada prova. Pode persistir muito tempo, até que o princípio mesmo da vida social seja atingido e que a corrupção dissolva lentamente o organismo. A ordem reinava em Roma sob os césares, enquanto a civilização romana ia desmoronando dia a dia, não sob o esforço dos bárbaros, mas sob o peso de seus próprios vícios.

“Nossa sociedade chegará a eliminar de seu seio os elementos mórbidos que ameaçam transformar-se em germes de dissolução e de morte? Nós o esperamos, mas é necessário o ponto de apoio dos princípios eternos, o concurso de uma ciência verdadeiramente positiva, e a perspectiva de um ideal novo.

“Eis as condições da salvação social, porque aí estão, para os indivíduos, os meios de um verdadeiro renascimento. Uma sociedade não pode ser mais que o produto dos seres sociais que a constituem, e como o resultante de seu estado físico, intelectual e moral. Se quiserdes uma transformação social, fazei primeiro o homem novo.19

“Embora o círculo dos leitores das publicações filosóficas tenha crescido muito nestes últimos anos, quanta gente ainda ignora a existência desses jornais ou negligencia a sua leitura! É um erro. Sem eles, é impossível dar-se conta do estado das almas. Os órgãos da filosofia contemporânea têm ainda um outro alcance: preparam as questões que os acontecimentos levantarão em breve, e que será urgente resolver.

19 Escrevemos em 1862: “Antes de fazer as instituições para os homens, deve-se formar os homens para as instituições.” (Viagem Espírita.)

“Por certo a confusão é grande na imprensa filosófica; é um pouco a torre de Babel: cada um aí fala a sua língua e se preocupa muito mais em cobrir a voz do vizinho do que escutar as suas razões. Cada sistema aspira a ser único e exclui todos os outros. Mas é preciso guardar-se de os tomar ao pé da letra em seu exclusivismo. Talvez não haja um só que represente algum ponto de vista legítimo. Todos passarão: só a verdade é eterna; mas, talvez, nenhum deles seja completamente estéril; nenhum terá desaparecido sem juntar algo ao capital intelectual da Humanidade. O materialismo, o positivismo religioso e o positivismo filosófico, o independentismo (perdoem o barbarismo, que não é meu), o criticismo, o idealismo, o espiritualismo, o Espiritismo – pois é preciso contar com este recém-vindo, que tem mais partidários do que todos os outros reunidos – e, por outro lado, o protestantismo liberal, o idealismo liberal, e mesmo o catolicismo
liberal: tais são os nomes das principais bandeiras que, a títulos diversos e com forças desiguais, se acham representados no campo filosófico. Sem dúvida não existe aí um exército, porque não há obediência a um chefe, nem hierarquia, nem disciplina, mas esses grupos, hoje divididos e independentes, podem ser reunidos por um perigo comum.

“O movimento filosófico a que assistimos precede de pouco tempo o grande movimento religioso que se prepara. Logo as questões religiosas apaixonarão os espíritos, como o faziam há pouco as questões sociais, e mais fortemente ainda.

“Que ordem deve fundar-se por uma simples evolução da idéia cristã, restabelecida na sua pureza primitiva, como o pensam alguns, ou por uma espécie de fusão das crenças no terreno vago de um deísmo judaico-cristão, como o esperam outros homens de boa vontade, ou, o que nos parece muito mais provável, pela intervenção de uma idéia mais larga e mais compreensível, que dá à vida humana o seu verdadeiro objetivo, a primeira necessidade da época em que estamos, é a liberdade: liberdade de pensar e de publicar o seu pensamento, liberdade de consciência e de culto, liberdade de propaganda e de pregação! Por certo, em meio a tantos sistemas que se defrontam, é impossível que não se veja
abrir-se uma fase de discussões ardentes, apaixonadas, aparentemente desordenadas, embora essa fase preparatória seja necessária, como a agitação caótica é necessária à criação. Como os relâmpagos e os raios na atmosfera terrestre, a fermentação das idéias agita a atmosfera moral para a purificar. Quem pode temer a tempestade, sabendo que ela deve restabelecer o equilíbrio perturbado e renovar as fontes da vida?”

O mesmo número contém a seguinte apreciação de nossa obra sobre A Gênese. Não a reproduzimos senão porque se liga aos interesses gerais da doutrina:

“Passa-se em nossa época um fato de importância capital, e as pessoas fingem não ver. Contudo, aí há fenômenos a observar, que interessam à Ciência, notadamente a Física e a Fisiologia humanas; mas, ainda que os fenômenos chamados de Espiritismo só existissem na imaginação de seus adeptos, a crença no Espiritismo, espalhada com tanta rapidez por toda parte, é em si mesma um fenômeno considerável e muito digno de ocupar as meditações do filósofo.

“É difícil, mesmo impossível, apreciar o número das pessoas que crêem no Espiritismo, mas pode dizer-se que essa crença é geral nos Estados Unidos, e que se propaga cada vez mais na Europa. Na França há toda uma literatura espírita. Paris possui dois ou três jornais que a representam. Lyon, Bordeaux, Marselha, cada uma tem o seu.

“Na França, o Sr. Allan Kardec é o mais eminente representante do Espiritismo. Foi uma felicidade para essa crença ter encontrado uma inteligência que soubesse mantê-la nos limites do racionalismo. Teria sido fácil, com toda essa mistura de fenômenos reais e de criações puramente ideais e subjetivas que constituem a maravilha do que se chama o Espiritismo, deixar-se arrastar pela atração do milagre e pela ressurreição das velhas superstições! O Espiritismo poderia ter dado aos inimigos da razão um poderoso apoio, se tivesse voltado à demonologia, e existe no seio do mundo católico um partido que para isto ainda faz todos os esforços. Há também toda uma literatura deplorável, prejudicial, mas felizmente sem influência. Ao contrário, o Espiritismo, na França como nos Estados Unidos, resistiu ao espírito da Idade Média. O demônio nele não representa nenhum papel, e o milagre aí não vem introduzir as suas tolas explicações.

“Pondo de lado a hipótese que constitui o fundo do Espiritismo, e que consiste na crença de que os Espíritos das pessoas mortas se entretêm com os vivos por meio de certos processos de correspondência, muito simples e ao alcance de todos; pondo de lado, dizíamos, a hipótese deste ponto de partida, encontramo-nos em presença de uma doutrina geral, que está  perfeitamente em relação com o estado da Ciência em nossa época, e que responde perfeitamente às necessidades e às aspirações modernas. E o que há de notável é que a Doutrina Espírita é mais ou menos a mesma em toda parte. Se não é estudada senão na França, pode-se crer que as obras do Sr. Allan Kardec, que são como a enciclopédia do Espiritismo, aí o são por muitos. Mas esta paridade da doutrina se estende aos outros países; por exemplo, os ensinamentos de Davis, nos Estados Unidos, não diferem essencialmente dos do Sr. Allan Kardec. É verdade que nas idéias emitidas pelo Espiritismo, nada se encontra que não pudesse ter sido encontrado pelo espírito humano entregue só aos recursos da imaginação e da ciência positiva; mas, desde que as sínteses que são propostas pelos escritores espíritas são científicas e racionais, merecem ser examinadas sem prevenção, sem idéia preconcebida, pela crítica filosófica.

“A nova obra do Sr. Allan Kardec aborda as questões que constituem o objeto de nossos estudos. Hoje não podemos fazer-lhe um relatório. A ela voltaremos num próximo número e, ao mesmo tempo, diremos o que pensamos dos fenômenos ditos espíritas, e das explicações que dos mesmos podem ser dadas no estado atual da Ciência.”

Nota – Este mesmo número contém um notável artigo do Sr. Raisant, intitulado: Meu ideal religioso, e que os espíritas não desaprovariam.

CONFERÊNCIAS

Numa série de conferências feitas em abril último, pelo Sr. Chavée, no Instituto Livre do boulevard des Capucines, no 39, o orador fez, com tanto talento quanto verdadeira ciência, um estudo analítico e filosófico dos Vedas indianos e das leis de Manu, comparadas com o livro de Jó e os Salmos. O tema conduziu a considerações de elevado alcance, que tocam diretamente os princípios fundamentais do Espiritismo. Eis algumas notas colhidas por um ouvinte dessas conferências; não são senão pensamentos apanhados a esmo, que perdem necessariamente ao serem destacados do conjunto e privados de seus desenvolvimentos, mas que bastam para mostrar a ordem das idéias seguidas pelo autor:

“De que serve lançar um véu sobre o que é? De que serve não dizer bem alto o que se pensa baixinho? É preciso ter a coragem de dizer. Quanto a mim, terei esta coragem.”

“Nos Vedas indianos está dito: ‘Têm-se os seus pares no alto.’ E eu sou desta opinião.”

“Com os olhos da carne não se pode ver tudo.”

“O homem tem uma existência indefinida e o progresso da alma é indefinido. Seja qual for a soma de suas luzes, ela tem sempre a aprender, porque tem o infinito à sua frente e, embora não o possa atingir, seu objetivo será sempre dele se aproximar cada vez mais.”

“O homem individual não pode existir sem um organismo que o limite no seio da Criação. Se a alma existe após a morte, então tem um corpo, um organismo que chamo organismo superior, em oposição ao corpo carnal, que é o organismo inferior. Durante a vigília, esses dois organismos estão, a bem dizer, confundidos; durante o sono, o sonambulismo e o êxtase, a alma não se serve senão de seu corpo etéreo ou organismo superior; ela é mais livre neste estado; suas manifestações são mais elevadas, porque age sobre esse organismo mais perfeito, que lhe oferece menos resistência; ela abarca um conjunto de relações admiráveis, o que não pode fazer com o seu organismo inferior, que limita a sua clarividência e o campo de suas observações.”

“A alma é sem extensão; ela não é estendida senão pelo seu corpo etéreo, e circunscrita pelos limites desse corpo, que São Paulo chama organismo luminoso.”

“Um organismo, etéreo nos seus elementos constitutivos, mas invisível e atingível apenas pela indução científica, em nada contraria as leis conhecidas da Física e da Química.”

“Há fatos que a experimentação sempre pode reproduzir, constatando no homem a existência de um organismo interno superior, que deve suceder ao organismo opaco habitual, no momento da destruição deste último.”

“Depois que a morte separou a alma de seu organismo carnal, ela continua a vida no espaço, com seu corpo etéreo, assim conservando a sua individualidade. Entre os homens de que falamos e que estão mortos segundo a carne, certamente os há aqui entre nós, que assistem, invisíveis, às nossas conversas; estão ao nosso lado e planam acima de nossas cabeças; vêem-nos e nos escutam. Sim, estão aqui, eu vo-lo asseguro.”

“A escala dos seres é contínua; antes de ser o que somos, passamos por todos os graus desta escala, que estão abaixo de nós, e continuaremos a subir os que estão acima. Antes que nosso cérebro fosse réptil, foi peixe, e foi peixe antes de ser mamífero.”

“Os materialistas negam estas verdades; são honestos; são de boa-fé, mas se enganam! Desafio um materialista a vir aqui, a esta tribuna, provar que tem razão e que estou errado. Que venham provar o materialismo! Não, não o provarão; apenas emitirão idéias apoiadas no vazio; apenas oporão denegações, ao passo que vou demonstrar por fatos a verdade de minha tese.”

“Há fenômenos patológicos que provam a existência da alma após a morte? Sim, há, e vou citar um. Vejo aqui doutores em Medicina, que pretendem que isto não se dá. Apenas lhes responderei: Se não o vistes, é porque olhastes mal. Observai, buscai, estudai e o encontrareis, como eu próprio o achei.”

“É ao sonambulismo e ao êxtase que vou pedir as provas que vos prometi. – Ao sonambulismo? perguntar-me-ão. Mas a Academia de Medicina ainda não o reconheceu. – E daí? Nada tenho com a Academia de Medicina e a dispenso. – Mas o Sr. Dubois, de Amiens, escreveu um grosso volume in-8o contra essa doutrina. – Isto também não me importa; são opiniões sem provas, que desaparecem diante dos fatos.”

“Dir-me-ão ainda: ‘Não está mais na moda defender o sonambulismo.’ Responderei que não me preocupo em estar na moda, e que se poucos homens ousam professar verdades que ainda atraem o ridículo, sou daqueles a quem o ridículo não pode atingir, e que o afrontam de bom grado, para dizer corajosamente o que julgam ser a verdade. Se cada um de nós agisse assim, em breve a incredulidade perderia todo o terreno que ganhou desde algum tempo, e seria substituída pela fé. Não a fé, filha da revelação, mas a fé mais sólida, filha da Ciência, da observação e da razão.”

O orador cita numerosos exemplos de sonambulismo e de êxtase, que lhe deram a prova, de certo modo material, da existência da alma, de sua ação isolada do corpo carnal, de sua individualidade após a morte e, finalmente, de seu corpo etéreo, que não é senão o envoltório fluídico ou perispírito.

Como se vê, a existência do perispírito, suspeitada desde toda a antiguidade pelas inteligências de escol, mas ignorada pelas massas, demonstrada e vulgarizada nestes últimos tempos pelo Espiritismo, é toda uma revolução nas ideais psicológicas e, por conseguinte, na filosofia. Admitido este ponto de partida, chega-se forçosamente, de dedução em dedução, à individualidade da alma, à pluralidade das existências, ao progresso indefinido, à presença dos Espíritos entre nós, numa palavra, a todas as conseqüências do Espiritismo, até ao fato das manifestações que se explicam de maneira toda natural.

Por outro lado, demonstramos no tempo que, partindo do princípio da pluralidade das existências, hoje admitido por numerosos pensadores sérios, mesmo fora do Espiritismo, se chega exatamente às mesmas conseqüências.

Se, pois, homens, cujo saber tem autoridade, professam abertamente, pela palavra ou por seus escritos, mesmo sem falar do Espiritismo, uns a doutrina do perispírito sob um nome qualquer, outros a pluralidade das existências, na realidade é professar o Espiritismo, pois são dois caminhos que a ele conduzem forçosamente. Se hauriram essas idéias em si mesmos e em suas próprias observações, isto só prova melhor que elas estão em a Natureza e quão irresistível é o seu poder. Assim, o perispírito e a reencarnação são, de agora em diante, duas portas abertas para o Espiritismo, no domínio da filosofia e nas crenças populares.

As conferências do Sr. Chavée são, pois, verdadeiras conferências espíritas, menos a palavra; e, sob este último aspecto, diremos que no momento elas são mais proveitosas à Doutrina do que se empunhassem abertamente a sua bandeira. Popularizam as suas idéias fundamentais sem ofuscar os que, por ignorância da coisa, tivessem prevenção contra o nome. Uma prova evidente da simpatia que estas idéias encontram na opinião é o acolhimento entusiasta que é feito às doutrinas professadas pelo Sr. Chavée, pelo numeroso público que se comprime em suas conferências.

Estamos persuadidos de que mais de um escritor, que põe os espíritas em ridículo, aplaude o Sr. Chavée e suas doutrinas, que acha perfeitamente racionais, sem suspeitar que seja nada mais nada menos que o mais puro Espiritismo.

O jornal Solidarité, em seu número de 1o de maio, por nós citado acima, dá um relato dessas conferências, para o qual chamamos a atenção dos nossos leitores, já que completa, sob outros pontos de vista, os ensinamentos acima.

Nota – A abundância das matérias nos obriga a adiar para o próximo número o relato de dois interessantíssimos folhetins do Sr. Bonnemère, autor do Romance do Futuro, publicados no Siècle de 24 e 25 de abril de 1868, sob o título de Paris sonâmbula. O Espiritismo é aí claramente definido.

R.E. , junho de 1868, p. 250