Galileu
Galileu
FRAGMENTOS DO DRAMA DO SR. PONSARD

(Ver o número precedente)

Um século antes de Galileu, Copérnico tinha concebido o sistema astronômico  que  traz o seu nome.13 Com o auxílio do telescópio que havia inventado, e juntando a observação direta à teoria, Galileu completou as idéias de Copérnico e demonstrou sua verdade pelo cálculo. Com seu instrumento, pôde estudar a natureza dos planetas e, de sua similitude com a Terra, concluiu pela sua habitabilidade. Igualmente tinha reconhecido que as estrelas são outros tantos sóis, disseminados nos espaços sem limites, e pensou que cada um devia ser o centro do movimento de um sistema planetário. Acabava de descobrir os quatro satélites de Júpiter e este acontecimento abalou o mundo científico e o mundo religioso. O poeta se dedica a pintar, no seu drama, a diversidade dos sentimentos que excitou, conforme o caráter e os preconceitos dos indivíduos.

Dois estudantes da Universidade se entretêm com a descoberta de Galileu, e como não estão de acordo, buscam a opinião de um professor de renome.

Albert:

Nós num ponto, doutor, em desacordo estamos,Queríamos, pois, saber o que pensais.

Pompeu:

Ele aceita pedir conselhos bons, reais,
– De que se trata, então?

13 Copérnico, astrônomo polonês, nascido em Thorn (Estados prussianos) em 1473, morto em 1543. – Galileu, nascido em Florença em 1564, condenado em 1633, morto em 1644, cego. O sistema de Copérnico já era condenado pela Igreja.

Vivian:

Dos satélites vistos
De Júpiter ao redor nos orbitais previstos.

Pompeu:

Não existem, não.

Vivian:

Mas...

Pompeu:

Não podem existir.

Vivian:

Podemos, entretanto, os ver e conferir.

Pompeu:

Não, nem mesmo os contar que inexistentes são.

Albert:

Tu o ouves, Vivian?

Vivian:

E por que mestre, então?

Pompeu:

E porque sustentar que Deus pode ter feito
Quatro globos além dos sete com efeito
É propósito mau, um tema em fantasia,Anti-religioso e sem filosofia.
(E vendo Galileu seguido por muitos estudantes)
Basbaques, tolos, são! e infame charlatão!

Albert a Vivian:

Vês que o doutor Pompeu contra ti se revela.

Vivian:

Bem melhor pra Doutrina em que creio e tão bela;
É de toda a verdade a marcha natural,
Contra ela amotinar-se os pedantes do mal.

Aí bem está a força do raciocínio de certos negadores das idéias novas: isto não é porque não pode ser. Perguntava-se a um sábio: Que diríeis se vísseis uma mesa erguer-se sem ponto de apoio? – Não acreditaria, respondeu ele, porque sei que isto não pode ser.

Um monge, pregando à multidão:

Escutai o que diz o Apóstolo: Nos céus
Vossos olhos passeais, por que, ó Galileus?
Que ele, assim, de antemão anátema lançava
Contra ti, Galileu, e teu plano atacava.
Nós mesmos vemos, hoje, e muito claramente,
Quanto horror tem o céu a este ensino inciente,
E o Arno transbordado e o gelo nos vinhais,
Do divino furor são dolentes sinais.
Meus irmãos, desdenhai as mentiras grosseiras;
Para a Terra marchar só com pés, sem canseiras?
Pois se a Lua se move é que há um anjo que a guia;
Porque a cada planeta um condutor vigia;
Mas da Terra, seu anjo, onde ele está, nos montes?
Seria visto aí. – No centro? O mal tem fontes.

Lívia, mulher de Galileu, é o tipo de pessoa de mente estreita, mais preocupada com a vida material do que com a glória e a verdade.

Lívia, a Galileu:

...Por que a mente esquentar,
Novos ensinos tens em vão a divulgar?
Tais novidades são resumíveis num termo,
Invenção do diabo e o mal expresso em ermo.
Pelo modo por que vos olha cada qual,
Se não te guardas bem, isto acabará mal.
Oh! por que não seguir os dignos professores
Que isso dizem citando os seus predecessores?
Eis pessoas em quem reina sempre o bom-senso;
Ensinam sem questão no que esperam consenso,
E sem se desgastar em público abatido
Se a Aristóteles ou Copérnico haver crido,
Sustentam com saber que a certa opinião
Aquela deve ser por qual se paga então,
Se a Aristóteles cabe o cofre-forte abrir,
Aristóteles faz Copérnico sair.
Não se fazem assim dissentir com ninguém;
Mas embolsam em paz os florins que lhes vêm;
Prosperam; moram bem; e sempre bem nutridos;
As filhas dotes têm com que encontram maridos;
Seu auditório é suave e nunca atormentado;
Retornam sempre ao lar para o caldo esperado;
Mas vós, vós fazeis raiva, e alguém vos aplaudia
E nesse meio tempo, eis que o jantar esfria.

Fragmentos do monólogo de Galileu no começo do segundo ato:

Não mais o tempo em que, no reino solidão,
A Terra no seu trono era imóvel então;
Não, o carro veloz, levando o astro do dia
Do nascer até se pôr não mais seu rumo guia;
Pois já do firmamento a curva cristalina
Que, como um teto azul, de lustres se ilumina;
Não é só para nós que Deus fez Universos;
Mas antes de nos ter fomos no orgulho imersos!
Pois se abdicamos nós uma realeza falsa,
Porquanto da verdade a Ciência nos exalça;
Faz-se o corpo menor, mais o Espírito cresce;
Nossa nobreza crê ou nossa fé decresce.
Para o homem é mais belo, ínfima criatura,
Os intricados véus ele abrir da Natura,
E de ousar abraçar em sua concepção
A lei universal da própria criação,
Como nos dias ser, de vaidosa mentira
Rei de certa ilusão que num sonho se mira,
Centro inculto de um todo e do qual crê-se autor,
E só por ter pensado, hoje acha-se senhor.
O Sol, globo de fogo, gigantesca fornalha,
Um caos incandescente e de onde a vida espalha,
Tempestivo oceano onde oscilam perdidos
Rochas que se diluem e alguns metais fundidos,
Batendo e misturando, as vagas inflamadas
São negras explosões de fumo carregadas,
Uma ilhota vermelha exsurge do crisol,
Tolda pela manhã, hoje a face do Sol;
Almeja em torno a ti, ó incêndio fecundo,
A Terra, nossa mãe, um resfriar profundo,
E, resfriados como ela, e, que vivem como ela;
Marte sempre sangrento e Vênus de luz bela;
Junto ao teu esplendor, Mercúrio vive assim,
E desse reino teu Saturno no confim,
E por Deus, para mim, e com venturas suas
A Júpiter coroa um quádruplo de luas.
Mas, astro soberano e centro desses mundos
Para além desse império os limites profundos,
Os milhares de sóis numerosos e densos,
Que ninguém contar pode em seus grupos imensos.
Prolongam, como tu, suas vastas crateras,
Movendo, como tu, planetárias esferas,
Que lhes giram em torno, o seu curso a compor,
E colhem de seu rei claridade e calor.
Oh! sim, sois vós melhor que as lâmpadas noturnas,
Que dariam mais luz que as chamas taciturnas,
Inúmeros clarões, estrelas que empoeirais,
De vossa areia de ouro as sendas azulais,
Em casa vos palpita a vida universal,
Mais não vemos senão uma centelha astral.
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E em toda a parte ação, o movimento e a alma!
Rolando, aqui e ali, em seus centros sem calma,
Globos de habitação, cujos homens pressinto,
Viverem meu viver, sentirem como eu sinto,
Uns rebaixados mais, enquanto outros talvez
Em mais altos degraus na ordem de sua vez!
Quão grande! Como é belo! Em que culto profundo!
O Espírito em torpor, se perde em abismo fundo!
Copiosíssimo autor, que tua onipotência
Aí se mostra em glória e em tal magnificência!
Que a vida a se expandir em ondas no infinito,
Vastamente proclama o teu nome bendito!
Perseguidores, ide! Anátemas lançai!
Tenho mais fé que vós, sabendo pois ficai.
Deus, que vós invocais, melhor que vós imerso
Nele vejo: só lama, e pra vós é o Universo;
Para mim sobretudo a obra divina brilha;
Vós a fazeis estreita, e eu lhe redobro a trilha;
Como se dava aos reis carro triunfador,
Universos coloco aos pés do Criador.

Fragmentos do diálogo entre o inquisidor e Galileu:

O Inquisidor:

Verdadeiro não é qual o das Escrituras;
Erro é tudo o que resta, e visões, e imposturas;
Quem no contrário crê em seu ensinamento
Não é esclarecido, é um cego desatento.

Galileu:

Sim, a fé do cristão tem a norma que a guia;
Seu único poder reina na teologia,
E deve a adoração curvar nossos esp’ritos
Aos dogmas divinais em que aí são inscritos;
Mas da matéria o mundo escapa à força insana;
Deus o entrega inteiro à discussão humana;
Por de coisas tratar que caem sob os sentidos,
Sentidos e razão se mostram combalidos;
A autoridade cala; e nula a ordem se faz
Bem no centro da esfera os raios desiguais,
De heresia se anula acusar-se o compasso,
Nem aos corpos impor que não girem no espaço.
Enfim, o olho é juiz do Universo visível.
Se o imutável dogma é na Bíblia intangível,
A Ciência repele essa imobilidade,
E nos ferros morrendo alcança a liberdade.
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O Inquisidor:
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Ora, não vês então que teu novo sistema
Turvando a astronomia à fé deixa em dilema?
O erro material em certo ponto aceito,
Em todo o Testamento o exame faz suspeito;
Quem uma vez falhou não é mais infalível;
A dúvida se aceita, o exame é ato possível,
E logo há conclusão, se alguém ousa julgar,
Da física inexata o dogma se enganar.

Galileu

Eu a fé destruir, quando engrandeço o culto!
Em sua obra ver Deus é Lhe fazer insulto?
Ah! senti-la melhor, é melhor adorá-la,
E entanto, honrá-la mal é que é desfigurá-la.
Os céus conforme a Bíblia em que devemos crer,
Os céus de seu Autor glória nos fazem ver;
Bem melhor que ninguém Lhe escuto a narração,
E tenho repetido o que a dizer estão.
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De uma verdade nova há quem lhe barre o fio?
Uma gota deter, será deter um rio?
Crede-me, respeitai estas aspirações,
Elas têm muito impulso e muitas expansões
Pra deixar-se reter nas grades da prisão;
Deixai-lhes livre o campo ou morte ao barreirão!
– Ah! Roma ao ver um dia os teus cultos proscritos,
Dizias nada opor senão do gládio aos ritos;
Só triunfaste, então, ao mudar de papel
E opondo ao próprio gládio a palavra em laurel.

Antônia, filha de Galileu, vendo proscrito o pai, lhe diz:

Tua filha, eis-me aqui. Sim, meu piedoso amor
Seguirá o proscrito, e dos céus vencedor.
Levando, vale a vale, o teu bastão assim,
Direi: “De Galileu o pão trazei-mo a mim,
Para aquele que um lar negaram-lhe os cristãos,
E altar teria tido entre os povos pagãos.”

Galileu sondou as profundezas dos céus e revelou a pluralidade dos mundos materiais. Como dissemos, foi toda uma revelação nas idéias; um novo campo de exploração foi aberto à Ciência. O Espiritismo vem operar outra não menor, revelando a existência do mundo espiritual que nos rodeia; graças a ele o homem conhece seu passado e seu verdadeiro destino. Galileu derrubou as barreiras que circunscreviam o Universo: o Espiritismo o povoa e enche o vazio dos espaços infinitos. Embora mais de dois séculos nos separem das descobertas de Galileu,muitos preconceitos ainda estão vivos; a nova doutrina emancipadora encontra os mesmos obstáculos; atacam-na com as mesmas armas, opõem-lhe os mesmos argumentos. Lendo o drama do Sr. Ponsard, poder-se-ia dar nomes próprios modernos a cada um de seus personagens. Entretanto, a má vontade e a perseguição não impediram que a doutrina de Galileu triunfasse, porque era a verdade. Dar-se-á o mesmo com o Espiritismo, porque é, também, uma verdade. Seus detratores serão olhados pela geração futura com os mesmos olhos com que olhamos os de Galileu.

R.E. , maio de 1867, p. 205