Pergaminho
A Espineta de Henrique III
O fato seguinte é a continuação da interessante história da Ária e letra do rei Henrique III, relatada na Revista de julho de 1865. Desde então o Sr. Bach tornou-se médium escrevente; mas pratica pouco, devido à fadiga resultante. Só o faz quando incitado por uma força invisível, que se traduz por viva agitação e tremor da mão, porque, então, a resistência é mais penosa que o exercício. É mecânico no mais absoluto sentido da palavra e não tem consciência nem lembrança do que escreve. Um dia em que se achava nessa disposição, escreveu esta quadra:

O rei Henrique dá essa grande espineta
A Baldazzarini, um bom músico então.
E se ela não é boa, elegante, completa
Ao menos trate-a bem, por justa gratidão.

A explicação destes versos, que para o Sr. Bach não tinham sentido, lhe foi dada em prosa.

“O rei Henrique, meu senhor, que me deu a espineta que possuis, tinha escrito uma quadra num pedaço de pergaminho e a mandara pregar no estojo; certa manhã ele ma enviou. Alguns anos mais tarde, tendo de fazer uma viagem, e temendo, já que eu levava minha espineta para fazer música, que o pergaminho fosse arrancado e se perdesse, tirei-o; e para não perdê-lo, coloquei-o num pequeno nicho, à esquerda do teclado, onde ainda se encontra.”

A espineta é a origem dos pianos atuais, na sua maior simplicidade, e se tocava da mesma maneira. Era um pequeno cravo de quatro oitavas, de aproximadamente um metro e meio de comprimento por quarenta centímetros de largura, e sem pés. As cordas, no interior, eram dispostas como nos pianos, e tocadas por meio de teclas. Era transportada à vontade, acondicionada num estojo, como se faz com os baixos e os violoncelos. Para utilizá-la, era posta numa mesa ou sobre um X móvel.

O instrumento estava então em exposição no museu retrospectivo, nos Champs-Elysées, onde não era possível fazer a busca indicada. Quando ela lhe foi devolvida, o Sr. Bach, juntamente com o filho, apressou-se em rebuscar todos os cantos, mas inutilmente, de sorte que a princípio pensou tratar-se de uma mistificação. Entretanto, para nada ter a censurar-se, desmontou-a completamente e descobriu, à esquerda do teclado, entre duas pranchetas, um intervalo tão estreito que nele não se podia introduzir a mão. Explorou esse recanto, cheio de poeira e de teias de aranha, e daí retirou um pedaço de pergaminho dobrado, enegrecido pelo tempo, com trinta e um centímetros de comprimento por sete e meio de largura, sobre o qual estava escrita a quadra seguinte, em caracteres da época, bastante grandes:

Eu, Henrique Terceiro, entrego esta espineta
A Baltasarini, meu músico feliz,
Quanto ao som, o que importa aqui é minha meta:
Dar-lha como lembrança e tê-la como eu quis.

Henrique

Esse pergaminho é perfurado nos quatro cantos por furos que, evidentemente, são os dos pregos que serviram para fixá-lo na caixa. Além disso, tem nas bordas uma porção de furos alinhados e regularmente espaçados, que parecem ter sido feitos por preguinhos. Foi exposto na sala de sessões da Sociedade, e todos tivemos o prazer de o examinar, bem como a espineta, na qual o Sr. Bach tocou e cantou a ária e a letra a que nos referimos, e que, como se sabe, lhe foram reveladas em sonho.

Os primeiros versos ditados reproduziam, como se vê, o mesmo pensamento que os do pergaminho, dos quais são a tradução em linguagem moderna, e isto antes que estes últimos fossem descobertos.

O terceiro verso é obscuro e contém, sobretudo, a palavra ma, que parece não ter qualquer sentido e não se ligar à idéia principal, e que, no original, está enquadrada num filete. Inutilmente procuramos a sua explicação, e o próprio Sr. Bach não o sabia. Estando um dia em casa deste último, teve ele, espontaneamente e em minha presença, uma comunicação de Baldazzarini, dada em nossa intenção, vazada nestes termos:

“Amico mio,
 
Estou contente contigo; escrevestes esses versos em minha espineta; minha promessa está realizada e agora estou tranqüilo (Alusão a outros versos ditados ao Sr. Bach e que Baldazzarini lhe tinha dito que escrevesse no instrumento). Quero dizer uma palavra ao sábio presidente que vem te visitar:

Allan Kardec, ó tu, cujos úteis trabalhos
Instruem cada dia a novos bons obreiros
Não nos trazes jamais quaisquer princípios falhos;
Que os Espíritos bons aclarem teus roteiros.
Preciso é pois lutar, enfim contra a ignorância
Dos que sábios se crêem da Terra por jactância.
Não te abatas porém; a tarefa é de dores;
Mas fácil quando o foi aos bons propagadores?

“O rei zombava de meu sotaque em seus versos; eu sempre dizia ma, em vez de mas. Adio, amico.

Baldazzarini

Assim foi dada, sem pergunta prévia, a explicação daquele ma. É o vocábulo italiano que significa mas, intercalado por brincadeira, pelo qual o rei designava Baldazarinni que, como muitos de sua nação, o pronunciava muitas vezes. Assim o rei, dando aquela espineta ao seu músico, lhe disse: Se não é boa, se soa mal, ou se ma (Baldazzarini) a julga muito simples, de pouco valor, que a guarde em seu estojo, como lembrança minha.”

A palavra ma está enquadrada num filete, como se entre parênteses. Certamente por muito tempo teríamos procurado esta explicação, que não podia ser reflexo do pensamento do Sr. Bach, já que ele próprio não a compreendia. Mas o Espírito viu que necessitávamos dela para completar o nosso relato e aproveitou a ocasião para no-la dar, sem que tivéssemos pensado em lha solicitar, porque, quando o sr. Bach se pôs a escrever, nós ignorávamos, assim como ele, qual era o Espírito que se comunicava.

Restava uma importante questão a resolver, a de saber se a escrita do pergaminho era realmente da mão de Henrique III. O Sr. Bach se dirigiu à Biblioteca Imperial para compará-la com a dos manuscritos originais. De início encontraram alguns que não tinham perfeita similitude, mas apenas um mesmo tipo de letra. Com outras peças a identidade era absoluta, tanto para o corpo da escrita, quanto para a assinatura. Essa diferença provinha de que a caligrafia do rei era variável, circunstância que logo será explicada.

Assim, não podia haver dúvida quanto a autenticidade dessa peça, embora certas pessoas, que professam uma incredulidade radical em relação às coisas ditas sobrenaturais, tenham pretendido que não passava de uma imitação muito exata. Ora, observaremos que aqui não se trata de uma escrita mediúnica, dada pelo Espírito do rei, mas de um manuscrito original, escrito pelo próprio rei, em vida, e que nada tem de mais maravilhoso do que aqueles que circunstâncias fortuitas fazem descobrir diariamente. O maravilhoso, se maravilhoso existe, está apenas na maneira pela qual sua existência foi revelada. É bem certo que se o Sr. Bach se tivesse contentado em dizer que o tinha encontrado por acaso em seu instrumento, não teriam levantado nenhuma objeção.

Estes fatos tinham sido relatados em sessão da Sociedade, de 19 de janeiro de 1866, à qual assistia o Sr. Bach. O Sr. Morin, membro da Sociedade, médium sonâmbulo muito lúcido e que, em seu sono magnético, vê perfeitamente os Espíritos e com eles se entretém, assistia à sessão em estado de sonambulismo. Durante a primeira parte da sessão, consagrada a leituras diversas, à correspondência e ao relato dos fatos, o Sr. Morin, com quem não se ocupavam, parecia em conversa mental com seres invisíveis; ele lhes sorria e trocava com eles apertos de mãos. Quando chegou sua vez de falar, pediram-lhe que designasse os Espíritos que via e rogasse a eles que nos transmitissem, por seu intermédio, o que nos quisessem dizer para nossa instrução. Não lhe foi dirigida uma única pergunta direta. Só mencionamos sumariamente alguns fatos passados, para dar uma idéia do aspecto da sessão e para chegar ao assunto principal que aqui nos ocupa.

Nomeá-los todos, disse ele, seria impossível, pois seu número é muito grande; aliás, há muitos que não conheceis, e que vêm para se instruir. A maioria deles queria falar, mas cedem o lugar aos que, no momento, têm coisas mais importantes a dizer.

Para começar, está ao nosso lado o nosso antigo colega, o último que partiu para o mundo dos Espíritos, o Sr. Didier, que não falta a nenhuma de nossas sessões e que vejo exatamente como em vida, com a mesma fisionomia; dir-se-ia que está aqui com o seu corpo material; apenas não tosse mais. Dá-me conta de suas impressões, de sua opinião sobre as coisas atuais, e me encarrega de vos transmitir suas palavras.

Em seguida vem um rapaz, que se suicidou recentemente em circunstâncias excepcionais e cuja situação descreve, o qual apresenta uma fase, de certo modo nova, do estado de certos suicidas após a morte, em razão das causas determinantes do suicídio e da natureza de seus pensamentos.

Depois vem o Sr. B..., fervoroso espírita, morto há alguns dias, em conseqüência de uma operação cirúrgica, e que tinha haurido em sua crença e na prece a força para suportar corajosamente e com resignação seus longos sofrimentos. “Que reconhecimento, diz ele, não devo ao Espiritismo! Sem ele certamente teria posto fim às minhas torturas e seria como esse jovem infeliz que acabais de ver. A idéia do suicídio me veio algumas vezes, mas sempre a repeli. Sem isto, como teria sido triste a minha sorte! Hoje sou feliz, oh! muito feliz, e agradeço aos nossos irmãos, que me assistiram com suas preces cheias de caridade. Ah! se soubessem quão doces e salutares eflúvios a prece do coração derrama sobre os sofrimentos!”

“Mas, então, onde me conduzem? continua o sonâmbulo; num abrigo miserável! Lá está um homem ainda jovem, que morre do peito... a miséria é completa: nada para se aquecer, nada para comer! Sua esposa, esgotada de fadiga e de privações, não pode mais trabalhar... Ah! o último triste recurso!... não tem mais cabelos.... cortou-os e vendeu para obter alguns centavos!... Quantos dias isto os fará viver?... É horroroso!”

Solicitado se pode indicar o domicílio dessa pobre gente, disse: “Esperai!” Depois parece escutar o que lhe dizem; toma um lápis e escreve um nome, com indicação da rua e número. Feita a verificação na manhã seguinte, tudo foi achado
perfeitamente exato.

Refeito da emoção e voltando seu Espírito ao local da sessão, ele ainda falou de várias outras pessoas e de diversas coisas, que foram para os nossos guias espirituais assunto de instruções de elevado alcance, e que teremos ocasião de referir de outra vez.

De repente exclama: “Mas aqui há Espíritos de toda espécie! Alguns foram príncipes, reis! Um deles avança; tem o rosto longo e pálido, uma barbicha pontuda, uma espécie de gorro encimado por uma centelha. Ele me pede que vos diga:

‘O pergaminho de que falastes e que tendes sob os olhos foi mesmo escrito por minha mão, mas, a respeito, eu vos devo uma explicação.

‘Em meu tempo não se escrevia com tanta facilidade quanto hoje, sobretudo os homens de minha posição. Os materiais eram menos adequados e menos aperfeiçoados; a escrita era mais lenta, mais grossa, mais pesada; por isso refletia melhor as impressões da alma. Como sabeis, meu humor não era uniforme e, conforme eu estivesse em boa ou má disposição, minha escrita mudava de caráter. É o que explica a diferença que se nota nos meus manuscritos que restam. Quando escrevi esse pergaminho para o meu músico, enviando-lhe a espineta, estava num daqueles momentos de satisfação. Se procurardes em meus manuscritos aqueles cuja letra se assemelha à deste, reconhecereis, pelos assuntos tratados, que eu devia estar num desses bons momentos e aí tereis outra prova de identidade.”

Por ocasião da descoberta deste escrito, do qual falou o Grand Journal em seu número de 14 de janeiro, o mesmo jornal estampa o artigo seguinte, em seu exemplar de 21 de janeiro:

“Esgotemos a questão de correspondência, mencionando a carta da Sra. condessa de Martino, relativa à espineta do Sr. Bach. A condessa está persuadida de que o correspondente sobrenatural do Sr. Bach é um impostor, visto que devia assinar Baldazzarini e não Baltazarini, que é italiano macarrônico.”

Primeiramente faremos notar que essa chicana a propósito da ortografia de um nome próprio é sofrivelmente pueril, e que o epíteto de impostor, em falta do correspondente invisível, no qual não acredita a senhora condessa, cai sobre um homem honrado, o que não é de muito bom-gosto. Em segundo lugar, Baldazzarini, simples músico, espécie de trovador, bem podia não dominar a língua italiana em sua pureza, numa época em que não se dava tanta importância à instrução. Contestariam a identidade de um francês que escrevesse em francês macarrônico, e não se vê gente incapaz de escrever corretamente o próprio nome? Por sua origem, Baldazzarini não devia estar muito acima do macarronismo. Mas essa crítica cai diante de um fato: é que os franceses, pouco familiarizados com as nuanças da ortografia italiana, ouvindo pronunciar esse nome, naturalmente o escrevem à francesa. O próprio rei Henrique III, na quadra encontrada e citada acima, o escreve simplesmente Baltasarini, embora não seja um ignorante. Assim foi com os que enviaram ao Grand Journal o relato do fato em questão. Quanto ao músico, nas diversas comunicações que ditou ao Sr. Bach, e das quais temos em mãos vários originais, assinou Baldazzarini e, às vezes, Baldazzarrini, como se pode confirmar; a falta, pois, não é dele, mas dos que, por ignorância, afrancesaram seu nome, nós em primeiro lugar.

É realmente curioso ver as puerilidades a que se apegam os adversários do Espiritismo, prova evidente da escassez de boas razões.

R.E. , fevereiro de 1866, p. 76