Alma
Uma Explicação
A PROPÓSITO DA REVELAÇÃO DO SR. BACH

Sob o título de Carta de um desconhecido, assinada por Bertelius, o Grand Journal de 18 de junho de 1865, traz a seguinte explicação do fato relatado na Revista Espírita de julho último, relativa à ária do rei Henrique III, revelada em sonho ao Sr. Bach. O autor se apóia exclusivamente no sonambulismo, e parece fazer abstração completa da intervenção dos Espíritos. Embora, sob esse ponto de vista, difiramos de sua maneira de ver, sua explicação não deixa de ser menos sabiamente racional; e se não é, em nossa opinião exata em todos os pontos, contém idéias incontestavelmente verdadeiras e dignas de atenção.

Contra certos magnetizadores ditos fluidistas, que não vêem em todos os efeitos magnéticos senão a ação de um fluido material, sem levar a alma em conta, o Sr. Bertelius faz esta representar o papel capital. Ele a apresenta no seu estado de emancipação e de desprendimento da matéria, gozando de faculdades que não possui em estado de vigília. É, pois, uma explicação do ponto de vista completamente espiritualista, se não inteiramente espírita, o que já é alguma coisa para a afirmação da possibilidade do fato por outras vias que não a da materialidade pura, e isto num jornal importante.

É de notar que neste momento se produz, entre os negadores do Espiritismo, uma espécie de reação, ou, antes, formase uma terceira opinião, que pode ser considerada como uma transição. Hoje muitos reconhecem a impossibilidade de explicar certos fenômenos só pelas leis da matéria, mas ainda não podem decidir-se a admitir a intervenção dos Espíritos. Procuram sua causa na ação exclusiva da alma encarnada, agindo independentemente dos órgãos materiais. Incontestavelmente é um passo que se deve considerar como uma primeira vitória sobre o materialismo. Da ação independente e isolada da alma, durante a vida, a esta mesma ação depois da morte, a distância não é grande; para aí serão levados pela evidência dos fatos, e pela impossibilidade de tudo explicar apenas com o auxílio do Espírito encarnado.

Eis o artigo publicado no Grand Journal:

“Contando, no penúltimo número do Grand Journal, o fato singular ocorrido com o Sr. G. Bach, fazeis estas perguntas: ‘A espineta pertenceu a Baltazarini? – Foi o Espírito Baltazarini quem escreveu a romanza e a sarabanda? – Mistério que não ousamos aprofundar.’

“Por favor: por que um homem, que estimo julgar livre de preconceitos, recua diante da pesquisa da verdade? Mistério! – dizeis vós. – Não, senhor; não há mistério. Há uma simples faculdade, com que Deus dotou certos homens, como dotou outros com uma bela voz, com o gênio poético, com o espírito de cálculo, com uma perspicácia rara, faculdades que a educação pode despertar, desenvolver, melhorar. Em contrapartida, existe uma infinidade de outras faculdades conferidas ao homem, e que a civilização, o progresso e a educação aniquilam, em vez de favorecer o seu desenvolvimento.

“Não é verdade, por exemplo, que os povos selvagens têm uma sensibilidade auditiva que não possuímos? que aplicando o ouvido no chão, distinguem o passo de um homem, ou de vários homens, de um cavalo ou de vários cavalos, de um animal selvagem a grande distância?

“Também não é verdade que eles medem o tempo com precisão, sem ampulheta, sem relógio? que dirigem com segurança sua marcha através de florestas virgens, ou suas canoas nos rios e no mar, olhando as estrelas, sem o concurso da bússola e sem qualquer noção de Astronomia? – Enfim não é verdade que curam suas doenças sem médicos? que sabem tratar as picadas dos animais mais venenosos com ervas simples, que distinguem em meio a tantas outras, e acham aos seus pés? Não se sabe que curam as mais perigosas feridas com terra argilosa? E não podem, como me dizia tão judiciosamente, nos confins dos Estados Unidos, um chefe Pele-Vermelha, que o Grande Ser sempre pôs o remédio ao lado do mal?

“Estas verdades tornaram-se banais de tanto repetidas; mas delas se servem alguns para disfarçar a sua ignorância; outros – a maioria – para aí colher matérias para contradições. É tão fácil tomar ares de espírito forte negando tudo! e tão difícil explicar a obra de Deus, cujo segredo buscamos nos livros, quando encontraríamos sua solução na Natureza! Eis o grande livro aberto a todas as inteligências; mas nem todas são feitas para decifrar esses mistérios, porque aí uns lêem através de suas prevenções ou seus preconceitos, e outros através de sua insuficiência ou seu orgulho de sábio.

“Servi-vos dos meios mais simples para aprofundar os mistérios da Natureza, e encontrareis a solução, até os limites impostos à inteligência humana por uma inteligência superior.

“Dissestes que o Sr. Bach não é sonâmbulo. Que sabeis disto, e que sabe ele próprio? Afirmo que o Sr. Bach é sonâmbulo, mesmo sem jamais ter tido a honra de o encontrar e sem o conhecer. Nele o sonambulismo ficou em estado latente; foi necessário um acontecimento excepcional, uma sensação muito viva e muito persistente, uma emoção que compreenderão todos os que amam a curiosidade e o saber, para revelar a si mesmo uma faculdade da qual deve ter tido alguns exemplos, que ficaram despercebidos em sua vida, mas dos quais sem dúvida hoje se lembrará, se quiser interrogar o seu passado e refletir.

“De acordo com o que nos informastes, o Sr. Bach empregou uma parte do dia na contemplação de sua preciosa espineta; descobriu o inventário do instrumento (abril de 1564). ‘Ao deitar-se pensava nela; e quando o sono lhe veio cerrar as pálpebras, ainda pensava no instrumento.’

“O sonâmbulo procede por graus. – Quando quiserdes que ele veja o que se passa em Londres, por exemplo, deveis mencionar que o pondes numa carruagem, que toma uma estrada de ferro, que embarca e atravessa o mar (então, muitas vezes, sente náuseas), que desembarca, retoma a estrada de ferro e, finalmente, chega ao termo de sua viagem.

“O Sr. Bach seguiu a marcha habitual aos sonâmbulos. Tinha virado, revirado, desmontado e examinado detalhadamente a sua espineta; estava cheio desta idéia e, mentalmente, sem nisso pensar, deve ter dito consigo mesmo: ‘A quem pode ter pertencido esse instrumento?’ A corrente magnética – os espíritos fortes não negarão tal corrente – estabeleceu-se entre ele e o instrumento. Adormeceu e caiu no sono natural e, a seguir, passou naturalmente ao estado de sonambulismo. Então procurou, vasculhou no passado e se pôs em comunicação mais íntima com a espineta; deve tê-la virado, sacudido, posto a mão onde pousara a do antigo proprietário do instrumento, há três séculos; e, interrogando o passado, o que é infinitamente mais fácil que ver o futuro, achouse em contato com esse ser que não mais existe. Ele o viu com as suas vestes habituais, executando a ária que tantas vezes o instrumento tocou; ouviu a letra tantas vezes acompanhada e, arrastado por essa força magnética que se chama eletricidade, o Sr. Bach a escreveu, com a própria mão, tão bem quanto hoje se transmite a Lyon um telegrama escrito por vossa mão, com a vossa própria letra. O Sr. Bach escreveu no estado de sonambulismo, repito-o, essa ária e essa letra que jamais tinha ouvido; e, superexcitado por uma emoção muito viva, despertou banhado em lágrimas.

“Gritareis que é impossível. – Pois bem! escutai este fato: – Eu mesmo enviei uma sonâmbula à Inglaterra; ela realizou a viagem, não no sono sonambúlico, mas numa condição que não era o estado inteiramente natural, nem o de sonambulismo completo. – Apenas lhe ordenei que todas as noites dormisse o tempo necessário, naturalmente, e que escrevesse o que deveria fazer para chegar ao resultado que devia alcançar em sua viagem. – Ela não sabia uma palavra de inglês. Não conhecia ninguém. O caso que a preocupava era grave... Ela realizou sua viagem, escreveu todas as noites consultas sobre o que devia fazer, as pessoas que devia ver, os endereços onde as devia encontrar. Seguiu textualmente e ao pé da letra as indicações que se tinha dado, foi à casa de pessoas que não conhecia e das quais jamais ouvira falar e que eram justamente as que tudo podiam... E o fez tão bem que ao cabo de oito dias, um caso que teria exigido anos sem esperança de chegar ao fim, foi resolvido para a sua completa satisfação, e minha sonâmbula voltou depois de ter realizado maravilhas. – No estado natural essa mulher extraordinária é apenas uma pessoa comum.

“Notai este fato: sua letra no sono é completamente diferente da escrita habitual. Foram escritas palavras em inglês, língua que ela não conhece. Conversa comigo em italiano e, acordada, não seria capaz de dizer duas palavras nesse idioma.

“Assim, o próprio Sr. Bach escreveu e anotou, com a própria mão, a ária de Henrique III, embora talvez não reconhecesse sua letra. E o que é mais surpreendente, é que deve duvidar de suas faculdades magnéticas, como a minha sonâmbula que, a esse respeito, é de uma incredulidade tão radical que não se pode falar de magnetismo em sua presença, sem que ela se apresse em declarar que é uma insensatez acreditar nisto.

“E talvez ainda, conquanto não o digais, o Sr. Bach não tinha papel nem tinta. Em Londres minha sonâmbula encontrou sobre a mesa as indicações desejadas escritas a lápis; ela não tinha lápis!... Estou certo de que ela foi vasculhar no hotel, encontrou o lápis de que precisava e o trouxe para o seu quarto, com essa exatidão, essas precauções, essa leveza vaporosa, quase sobrenatural, comum nos sonâmbulos.

“Eu vos poderia citar fatos mais surpreendentes que o do Sr. Bach. Mas por hoje basta. Hesito mesmo em vos enviar estas notas, escritas ao sabor da pena.

“Há vinte anos que magnetizo, mas ocultei, mesmo aos meus melhores amigos, o resultado de minhas descobertas. É tão fácil tachar um homem de loucura! Há tanta gente interessada em pôr a luz debaixo do alqueire! E, acima de tudo, forçoso é dizer, há tantos charlatães que abusaram do magnetismo que seria necessária uma coragem sobre-humana para declarar que dele se ocupa. Seria melhor proclamar que se assassinou pai e mãe do que confessar que se acredita no magnetismo.

“Regra geral, entretanto: não creiais nunca, jamais! em experiências públicas, nos falsos sonâmbulos, que dão consultas mediante dinheiro, e oráculos como as sibilas antigas, que agem e falam à menor ordem e a qualquer hora, diante de um público numeroso, como um autômato habilmente fabricado. É charlatanismo! Nada é mais caprichoso, teimoso, volúvel, birrento e rancoroso que um sonâmbulo. Uma ninharia lhe paralisa as faculdades de segunda vista; uma bagatela o faz mentir por malícia; um nada o perturba e o faz mudar de rumo, e isto se compreende. Há algo mais susceptível que uma corrente elétrica?

“Eu me afastei de um hábil cientista, o Dr. E..., muito conhecido em Londres, com o qual iniciei minhas primeiras experiências magnéticas, justamente porque sempre considerei como grave falta o abuso do magnetismo. Empolgado pelos resultados miraculosos que obtínhamos, um dia ele quis enxertar o sistema frenológico no magnetismo. Pretendia que, tocando certas saliências da cabeça, o sonâmbulo apresentava a sensação da qual aquela saliência era sede. Tocando o local presumível do canto, o paciente cantava; o da gulodice, ele mastigava no vazio, dizendo que tal comida tinha este ou aquele sabor. E assim por diante.

“Considerei que era levar a experiência longe demais e, sobre um fato real – o sonambulismo – assentar uma ciência problemática: a frenologia. Eu queria ampliar o domínio das descobertas magnéticas, mas não abusar delas, como geralmente se faz.

“Tive a irreverência de declarar ao meu professor que ele se desviava e que eu defendia ser dever de todos quantos conhecem os fenômenos magnéticos se levantarem contra todas essas experiências, cujo único objetivo é satisfazer uma curiosidade ignorante, explorar algumas fraquezas humanas e não o de alcançar um resultado prático para a Humanidade, e útil a todos.

“Mas é mais difícil do que se pensa manter-se nesses limites honestos, quando se chegou a resultados maravilhosos. Os mais fortes magnetizadores se deixam arrastar e, fenômeno ainda mais maravilhoso, quando se chega a ponto de exigir sempre experiências públicas de seu paciente, este parece se perturbar, não tem mais esse imprevisto, essa lucidez, essa clarividência que o distinguiam; torna-se uma máquina automática, que responde sobre um tema dado e cujas faculdades se empobrecem até desaparecerem.

“Infelizmente, pessoas que não ousariam tentar uma simples experiência de física recreativa, que se confessam incapazes de executar o menor truque de prestidigitação, jamais hesitam, sem preparação e sem o menor estudo prévio, em fazer experiências magnéticas.

“Ah! se eu não temesse mergulhar os leitores do vosso Grand Journal num sono menos interessante, porém mais barulhento que o de meus sonâmbulos, eu vos entreteria em breve com fatos eminentemente curiosos... Mas antes é preciso saber que acolhida dareis a esta primeira carta; é o que sábado ficarei sabendo, ao rebentar o lacre de meu exemplar.

Bertellius
R.E. , setembro de 1865, p. 367