Ubiqüidade
Um Criminoso Arrependido25
(Continuação)

(Passy, 4 de outubro de 1864 – Médium: Sr. Rul.)

Nota – O médium tivera a intenção de evocar Latour desde o momento do suplício. Tendo perguntado a seu guia espiritual se poderia fazê-lo, este respondeu que esperasse lhe fosse indicado o momento. Somente no dia 3 de outubro a autorização foi dada, após ter lido o artigo da Revista, que fazia referência ao caso.

P. – Ouvistes as minhas preces?
Resp. – Sim; ouvi-as e vo-las agradeço, não obstante a minha perturbação.

Fui evocado quase imediatamente depois da minha morte, porém não pude manifestar-me logo, de modo que muitos 25 N. do T.: Vide O Céu e o Inferno, 2a parte, capítulo VI – Jacques Latour (continuação). Espíritos levianos tomaram-me o nome e a vez. Aproveitei a estada em Bruxelas do Presidente da Sociedade de Paris e comuniquei-me, com a aquiescência de Espíritos superiores.

Voltarei a manifestar-me na Sociedade, a fim de fazer revelações que serão um começo de reparação às minhas faltas, podendo também servir de ensinamento a todos os criminosos que me lerem e meditarem na exposição dos meus sofrimentos. É somente sobre o Espírito dos homens fracos ou das crianças que a narrativa de penas infernais pode produzir efeitos terroristas. Ora, um grande malfeitor não é um espírito pusilânime, e o temor da polícia é para ele mais real que a descrição dos tormentos do inferno. Eis por que todos os que me lerem ficarão comovidos com as minhas palavras e com os meus padecimentos, que não são ficções. Não há um só padre que possa dizer que viu o que tenho visto, porque tenho assistido às torturas dos danados. Mas, quando eu vier dizer: – “Eis o que se passou após a minha morte, a morte do corpo; eis a minha enorme decepção ao me reconhecer vivo, ao contrário do que supunha e tinha tomado pelo termo dos suplícios,quando era o começo de outras torturas, aliás indescritíveis!” – então, mais de um se deterá à borda do precipício em que ia despenhar-se, e cada um dos desgraçados, desviados por mim da senda criminosa, concorrerá para o resgate das minhas faltas. É assim que do próprio mal sai o bem, e que a vontade de Deus se manifesta em toda parte, na Terra como no espaço.

Foi-me permitido libertar-me do olhar das minhas vítimas transformadas em carrascos, a fim de comunicar convosco; ao deixar-vos, entretanto, tornarei a vê-las e só esta idéia me causa tal sofrimento que eu não poderia descrevê-lo. Sou feliz quando me evocam, porque assim deixo o meu inferno por alguns instantes.

Orai sempre ao Senhor por mim, pedi-lhe que me liberte do olhar das minhas vítimas.

Sim, oremos juntos. A prece faz tanto bem... Estou mais aliviado; não sinto tão pesado o fardo que me acabrunha. Vejo um resquício de esperança luzindo-me aos olhos e, contrito,exclamo: Bendita a mão do Senhor e seja feita a sua vontade!

J. Latour

O guia espiritual do médium dita o seguinte:

“Não tome os primeiros gritos do Espírito que se arrepende como sinal infalível de suas resoluções. Ele pode estar de boa-fé em suas promessas, porque a primeira impressão que sente ao se ver no mundo dos Espíritos é de tal modo fulminante que, ao primeiro testemunho de caridade que recebe de um Espírito encarnado, ele se entrega às expansões do reconhecimento e do arrependimento. Mas, por vezes, a reação é igual à ação e, em muitas outras, esse Espírito culpado, que ditou a um médium tão boas palavras, pode voltar à sua natureza perversa, às suas tendências criminosas. Como uma criança que ensaia os primeiros passos, precisa de ajuda para não cair.”

No dia seguinte o Espírito Latour foi evocado novamente.

O médium – Em vez de pedir a Deus para vos furtar ao olhar das vossas vítimas, eu vos convido a pedir a Ele que vos dê a força necessária para suportardes essa tortura expiatória.

Latour – Eu preferiria livrar-me de tais olhares. Se soubésseis quanto sofro... O homem mais insensível comover-se-ia vendo impressos na minha fisionomia, como que a fogo, os sofrimentos de minha alma. Farei, entretanto, o que me aconselhais, pois compreendo ser esse um meio de expiar um pouco mais rapidamente as minhas faltas. É qual dolorosa operação que viesse curar um corpo gravemente adoentado. Ah! Pudessem ver-me os culpados da Terra, e ficariam apavorados das conseqüências de seus crimes, desses crimes que, ignorados dos homens, são, no entanto, vistos pelos Espíritos. Como a ignorância é fatal para tanta gente!

Que responsabilidade assumem os que recusam instrução às classes pobres da sociedade! Acreditam que com polícia e soldados se previnem crimes... Que grande erro! Se dobrassem ou quadruplicassem o número de agentes da autoridade, os mesmos crimes seriam cometidos, porque é preciso que os Espíritos maus encarnados cometam crimes.

Eu me recomendo à vossa caridade.

Observação – Sem dúvida é por um resquício de preconceitos terrenos que diz Latour: “É preciso que os Espíritos maus encarnados cometam crimes.” Seria a fatalidade nas ações dos homens, doutrina que a todos desculparia. Aliás, é muito natural que ao sair de semelhante existência, o Espírito não compreenda ainda a liberdade moral, sem a qual o homem estaria ao nível dos animais. Causa admiração que ele não diga coisas ainda piores.

A comunicação seguinte, do mesmo Espírito, foi obtida espontaneamente em Bruxelas, pela Sra. C..., o mesmo médium que havia servido de instrumento à cena relatada no número de outubro.

“Nada mais receeis de mim; estou mais tranqüilo,embora ainda padeça. Vendo o meu arrependimento, Deus teve compaixão de mim. Agora sofro por causa desse arrependimento, que me demonstra a enormidade dos meus crimes. Bem aconselhado na vida, eu não teria jamais praticado todo esse mal, mas, sem repressão,obedeci cegamente aos meus instintos. Se todos os homens pensassem mais em Deus, ou, antes, se nele acreditassem, tais faltas não seriam cometidas.

“Falha é, porém, a justiça dos homens; uma falta muita vez passageira leva o homem ao cárcere, que não deixa de ser um foco de perversão. Daí sai ele completamente corrompido pelos maus exemplos e conselhos. Dado porém que a sua índole seja boa e forte para se não corromper, ainda assim, de lá saído, ele vai encontrar fechadas todas as portas, retraídas todas as mãos, indiferentes todos os corações! Que lhes resta pois? O desprezo, a miséria, o abandono e o desespero, se é que o assistem boas resoluções de se corrigir. Então a miséria o leva aos extremos, e assim é que também ele se toma de desprezo por seu semelhante, assim é que o odeia e perde a noção do bem e do mal, por isso que repelido se encontra, a despeito das suas boas intenções. Para angariar o necessário, rouba, mata às vezes, e depois... depois o executam! Meu Deus, ao ser presa novamente das minhas alucinações, sinto que a vossa mão se estende por sobre mim; sinto que a vossa bondade me envolve e protege.

“Obrigado, meu Deus! na próxima existência empregarei toda a minha inteligência no socorro aos desgraçados que sucumbiram, a fim de os preservar da queda. Obrigado a vós que não desdenhais de comunicar comigo; nada receeis, pois bem
o vedes, eu não sou mau. Quando pensardes em mim, não vos figureis o meu retrato pelo que de mim vistes, mas o de uma alma angustiada que agradece a vossa indulgência.

“Adeus; evocai-me ainda e orai a Deus por mim.”

Latour

Observação – O Espírito faz alusão ao temor que sua presença inspirava ao médium.

“Sofro, diz ele ainda, por esse arrependimento, que me mostra a enormidade de minhas faltas.” Há nisto um pensamento profundo. Realmente, o Espírito não compreende a gravidade de seus erros senão quando se arrepende; o arrependimento traz o pesar, o remorso, sentimento doloroso, que é a transição do mal para o bem, da doença moral para a saúde moral. É para se furtarem a isto que os Espíritos perversos se tornam inflexíveis à voz da consciência, como os doentes que repelem o remédio que os deve curar. Procuram iludir-se e atordoar-se, persistindo no mal. Latour chegou a um período em que o endurecimento acaba por ceder; o remorso entrou em seu coração; seguiu-se o arrependimento; compreende a extensão do mal que fez; vê a sua abjeção e sofre com isto. Eis por que diz: “Sofro por esse arrependimento.” Em sua existência precedente, deveria ter sido pior que nesta, porquanto, se se tivesse arrependido como o fez agora, sua vida teria sido melhor. As resoluções tomadas agora influirão sobre sua existência terrestre futura; a que acaba de deixar, por mais criminosa que tenha sido, marcou-lhe uma etapa de progresso. É mais que provável que, antes de começá-la, ele fosse, na erraticidade, um desses Espíritos maus, rebeldes, obstinados no mal, como se vêem tantos.

Muitas pessoas perguntaram que proveito poder-se-ia tirar das existências passadas, já que não se lembram do que foram, nem do que fizeram.

Esta questão está completamente resolvida, levando-se em conta que, se o mal que praticamos estivesse apagado, e se dele não restasse traço algum em nossos corações, sua lembrança seria inútil, uma vez que com eles não mais temos de nos preocupar. Quanto àquilo de que não nos corrigimos completamente, nós o conhecemos por nossas tendências atuais; é para estas que devemos concentrar toda a nossa atenção. Basta saber o que somos, sem que seja necessário saber o que fomos.

Durante a vida, quando se considera a dificuldade da reabilitação do mais arrependido dos culpados, da reprovação de que é objeto, deve-se agradecer a Deus por ter lançado um véu sobre o passado. Se Latour tivesse sido condenado em tempo hábil, e mesmo se tivesse sido absolvido, seus antecedentes levariam a sociedade a rejeitá-lo. A despeito do seu arrependimento quem o teria admitido na intimidade? Os sentimentos que hoje manifesta como Espírito nos fazem esperar que, na próxima existência terrena, será um homem de bem, estimado e considerado. Mas suponde que se saiba quem foi Latour: a reprovação ainda o perseguirá. O véu lançado sobre o passado abre-lhe a porta da reabilitação; poderá sentar-se sem temor e sem desonra entre as mais distintas pessoas. Quantos não gostariam, fosse qual fosse o preço, de apagar da memória dos homens certos anos de sua existência!

Que se encontre, então, uma doutrina que melhor se concilie com a justiça e a bondade de Deus! Aliás, esta doutrina não é uma teoria, mas um resultado da observação. Não foram os espíritas que a imaginaram; eles viram e observaram as diversas situações em que se apresentam os Espíritos; procuraram a sua explicação, da qual saiu a doutrina. Se a aceitaram é porque ela resulta dos fatos e lhes pareceu mais racional que todas as concebidas até hoje sobre o futuro da alma.

Latour foi evocado muitas vezes, o que era muito natural. Mas, como sucede em casos semelhantes, houve muitas comunicações apócrifas, e os Espíritos levianos não perderam essa ocasião. A própria situação de Latour se opunha a que se pudesse manifestar quase simultaneamente em tantos pontos ao mesmo tempo. Tal ubiqüidade só é privilégio dos Espíritos superiores.

As comunicações que referimos são mais autênticas? Pensamos que sim e o desejamos, sobretudo para o bem desse Espírito. Em falta dessas provas materiais, que constatam a identidade de modo absoluto, como muitas vezes são obtidas, pelo menos temos provas morais, que tanto resultam das circunstâncias em que ocorrem as manifestações, quanto da concordância. Sobre as comunicações que conhecemos, oriundas de fontes diversas, pelo menos três quartas partes concordam quanto ao fundo; entre as outras algumas não resistem a um exame, tão evidente é o erro de situação, em flagrante contradição com o que nos ensina a experiência sobre o estado dos Espíritos no mundo espiritual.

Seja como for, não se pode recusar àquelas que citamos um alto ensino moral. O Espírito pode ter sido, deve mesmo ter sido ajudado em suas reflexões e, sobretudo, na escolha das expressões, por Espíritos mais adiantados. Mas, em casos semelhantes, estes últimos só assistem na forma, e não no fundo, e jamais põem o Espírito inferior em contradição consigo mesmo. Em Latour puderam poetizar a forma do arrependimento, mas não o teriam levado a exprimir o arrependimento contra a sua vontade, porque o Espírito tem o seu livre-arbítrio; nele viam o germe dos bons sentimentos, razão por que o ajudaram a exprimi-los, contribuindo, dessa maneira, para desenvolvê-los, ao mesmo tempo que para ele atraíram a comiseração.

Há algo de mais comovente, de mais moral, susceptível de impressionar mais vivamente, do que o quadro desse grande criminoso arrependido, a manifestar desespero e remorso? que, em meio às torturas, perseguido pelo olhar incessante de suas vítimas, eleva o pensamento a Deus para implorar misericórdia? Não está aí um salutar exemplo para os culpados? Tudo é sensato em suas palavras; tudo é natural em sua situação, enquanto a que lhe é atribuída por certas comunicações é ridícula. Compreende-se a natureza de suas angústias; elas são racionais, terríveis, embora simples e sem encenação fantasmagórica. Por que se não teria arrependido? Por que não haveria nele uma corda sensível e vibrante? Está precisamente aí o lado moral de suas comunicações; é a inteligência que tem da situação; são os pesares, as resoluções,os projetos de reparação que são eminentemente instrutivos. Que haveria de extraordinário no fato de ter-se arrependido sinceramente antes de morrer? que tivesse dito antes o que dissera depois?

Aos olhos da maioria de seus semelhantes, um retorno ao bem antes de sua morte teria passado por uma fraqueza. Sua voz de além-túmulo é a revelação do futuro que os aguarda. Está absolutamente certo quando diz que o seu exemplo é mais adequado a reconduzir os culpados que as perspectiva das chamas do inferno e, mesmo, o patíbulo. Por que, então, não o daria nas prisões? Isto levaria mais de um a refletir, conforme temos vários exemplos. Como, porém, acreditar nas palavras de um morto, quando se crê que, após a morte, tudo está acabado? Contudo, dia virá em que se reconhecerá esta verdade: que os mortos podem vir e instruir os vivos.
R.E. , novembro de 1864, p. 444