Duende
Variedades
MANIFESTAÇÕES DE POITIERS

Conforme nos disseram, os ruídos que tinham posto em alvoroço a cidade de Poitiers cessaram completamente, mas parece que os Espíritos barulhentos transportaram o teatro de suas proezas para as cercanias. Eis o que, a respeito, se lê no Pays:

“Os Espíritos batedores de Poitiers começaram a fazer escola e povoam os campos vizinhos. Escrevem de Ville-au-Moine, a 24 de fevereiro, ao Courrier de la Vienne (não confundir com o Journal de la Vienne, especial para a casa de O.):

“Senhor redator,

“Desde alguns dias nossa região está preocupada com a presença, em Bois-de-Doeuil, de Espíritos batedores que espalham o terror em nossas aldeias. A casa do Sr. Perroche é seu ponto de encontro: todas as noites, entre onze horas e meia-noite, o Espírito se manifesta por nove, onze ou treze pancadas, marcadas por duas e uma, e às seis da manhã, pelo mesmo barulho.

“Notai, senhor, que esses golpes são dados à cabeceira de uma cama onde se deita uma mulher, semimorta de pavor, que garante receber as comunicações de um tio de seu marido, morto em nossa cidade há um mês. Como é difícil acreditar nestas coisas, eu e vários de meus amigos quisemos conhecer a verdade e, para isto, fomos dormir em Bois-de-Doeuil, onde testemunhamos os fatos que nos haviam assinalado; vimos até agitar, no sentido longitudinal, o berço de uma criança, que parecia não estar em contato com ninguém.

“A princípio rimos da coisa, mas vendo que todas as precauções tomadas para descobrir um estratagema nenhum resultado tinham dado, retiramo-nos com mais estupor que vontade de rir.

‘Se o barulho continuar, a casa do Sr. Perroche não será suficientemente grande para receber os curiosos que, de Marsais, Priaire, Migre, Doeuil e mesmo de Villeneuve-la-Comtesse, vêm aos bandos para lá passar a noite e tentar descobrir as profundezas desse mistério.

“Aceitai, etc.”

Não faremos sobre tais acontecimentos senão uma curta reflexão. Ao relatá-los, o Journal de la Vienne tinha anunciado reiteradamente que estavam na pista do ou dos engraçadinhos que causavam aquelas perturbações, e que não tardariam a prendê-los. Se não o conseguiram, não podem acusar a autoridade de negligência. Como é possível, numa casa ocupada de alto a baixo por seus agentes, que esses engraçadinhos pudessem continuar suas manobras em sua presença, sem que lhes fosse possível apanhálos? É preciso convir que eles tinham, ao mesmo tempo, muita audácia e muita habilidade, desde que se safaram da força policial sem serem vistos. Além disso, é preciso que esse bando de espertalhões seja muito numeroso, pois fazem as mesmas brincadeiras em diversas cidades e a anos de intervalo, sem jamais serem surpreendidos; que o digam os casos da Rue des Grès e da Rue des Noyers, em Paris; das Grandes-Ventes, perto de Dieppe, e tantos outros, que também não chegaram a nenhum resultado. Como é que a polícia, que possui tão grandes recursos e despista os mais hábeis e os mais astutos malfeitores, não possa vencer a resistência de alguns barulhentos? Já refletiram sobre isto?

Aliás, esses fatos não são novos, como se pode ver pelo relato seguinte.

TASSO E SEU DUENDE

Escrevem-nos de São Petersburgo:

“Venerável mestre, tendo lido no primeiro número da Revista Espírita de 1864, o caso de um Espírito batedor do século dezesseis, lembrei-me de outro; talvez o julgueis digno de um pequeno lugar no vosso jornal. Tomo-o de uma notícia sobre a vida e o caráter de Tasso, escrita pelo Sr. Suard, secretário perpétuo da classe de língua e literatura francesas e inserido na tradução da Jerusalém Libertada, publicada em 1803.

“Após dizer que os sentimentos religiosos de Tasso,exaltados em conseqüência de sua disposição melancólica e das infelicidades resultantes, o levaram seriamente a convencer-se de que era objeto das perseguições de um diabrete que derrubava tudo em sua casa, roubava-lhe o dinheiro e tirava, de sobre a mesa e aos seus olhos, tudo quanto lhe era servido, acrescenta com o seu historiador: Eis a maneira pela qual o próprio Tasso lhe dá conta dessa perseguição:

“O irmão R... (comunica ele a um de seus amigos) trouxe-me duas cartas vossas, mas uma delas desapareceu assim que a li e creio que o duende a levou, tanto mais quanto era aquela em que faláveis dele. É um desses prodígios, dos quais tantas vezes fui testemunha no hospital, o que não permite duvidar que seja obra de algum mágico, e tenho muitas outras provas. Hoje mesmo retirou um pão de minha frente e noutro dia um prato de frutas.”

A seguir, queixa-se dos livros e papéis que lhe roubam e acrescenta: “Os que desapareceram enquanto eu não estava aqui, podem ter sido levados por homens que, penso, têm as chaves de todas as minhas caixetas, de sorte que nada mais tenho que possa proteger contra os atentados dos inimigos ou do diabo, a não ser a minha vontade, que jamais consentirá que algo me seja ensinado por ele ou seus sectários, nem a contrair familiaridade com ele ou seus magos.”

Em outra carta ele diz: “Tudo vai de mal a pior; esse diabo, que jamais me deixava, quer eu dormisse ou passeasse, vendo que não conseguia de mim o acordo que desejava, tomou o partido de roubar abertamente o meu dinheiro.”

“De outra vez, continuava o autor da notícia, julgou que a Virgem Maria lhe aparecia, e o abade Serassi conta que numa doença que teve na prisão, Tasso se recomendou com tanto ardor à Santa Virgem, que esta lhe apareceu e o curou. Tasso consagrou esse milagre num soneto.

“Continuando, o duende transformou-se em demônio mais afável, com quem Tasso pretendia conversar mais familiarmente e que lhe ensinava coisas maravilhosas. Todavia,pouco satisfeito com esse estranho comércio, Tasso atribuía sua origem à imprudência que cometera na juventude, de compor um diálogo onde se imaginava a conversar com um Espírito. ‘O que não teria eu querido fazer seriamente, ainda quando me tivesse sido possível’, concluiu.

“O Sr. Suard termina o relato dizendo: Não se pode evitar uma triste reflexão, ao pensar que foi aos trinta anos, depois de haver escrito uma obra imortal, que o infeliz foi escolhido para dar o mais deplorável exemplo da fraqueza do espírito.

“Mas vós, senhor, graças à luz do Espiritismo, podeis fazer outro julgamento e ver nestes fatos, estou certo, mais um elo na cadeia dos fenômenos espíritas que ligam os tempos antigos à época atual.”

Sem a menor dúvida os fatos que hoje se passam,perfeitamente comprovados e explicados, provam que Tasso podia achar-se sob o império de uma dessas obsessões que diariamente testemunhamos, e que nada têm de sobrenatural. Se ele tivesse conhecido a verdadeira causa não se teria com ela impressionado mais do que se o é atualmente; mas, naquela época, a idéia do diabo, das feiticeiras e dos mágicos estava em toda a sua força, e como,longe de a combater, buscavam entretê-la, ela podia reagir de modo lamentável sobre os cérebros fracos. Assim, é mais provável que Tasso não fosse mais louco do que o são os obsedados em nossa sociedade hodierna, aos quais são necessários cuidados morais e não medicamentos.

INSTRUÇÃO DE CIRO A SEUS FILHOS, NO MOMENTO DA MORTE

(Extraído da Ciropédia, de Xenofonte, liv. VIII, cap. VII)

Eu vos conjuro, meus filhos, em nome dos deuses de nossa pátria, a ter respeito um pelo outro, caso conserveis algum desejo de me agradar, pois imagino que não considereis como certo que eu não seja mais nada quando tiver cessado de viver. Até agora minha alma ficou oculta aos vossos olhos; mas por suas operações,reconhecíeis que ela existia.

Não notastes também de que terrores são atormentados os homicidas pelas almas dos inocentes que fizeram morrer, e que vinganças elas tomam desses ímpios? Pensais que o culto que se presta aos mortos teria sido mantido até hoje, caso se acreditasse que suas almas fossem destituídas de todo poder? Para mim, meus filhos, jamais pude persuadir-me de que a alma, que vive enquanto está num corpo mortal, se extinga desde que dele saiu,pois vejo que é ela que vivifica os corpos destrutíveis, enquanto os habita. Também jamais me pude convencer de que ela perca sua faculdade de raciocinar no momento em que se separa de um corpo incapaz de pensar; é natural crer que a alma, então mais pura e desprendida da matéria, goze plenamente de sua inteligência. Quando um homem está morto, vêem-se as diferentes partes que o compunham, unir-se aos elementos a que pertenciam: só a alma escapa aos olhares, quer durante sua estada no corpo, quer quando o deixa.

Sabeis que é durante o sono, imagem da morte, que mais a alma se aproxima da Divindade e que, nesse estado, muitas vezes prevê o futuro, sem dúvida porque, então, está inteiramente livre.

Ora, se estas coisas são como penso, e se a alma sobrevive ao corpo que abandona, fazei, em respeito à minha, o que vos recomendo; se eu estiver errado, se a alma ficar com o corpo e perecer com ele, ao menos temei os deuses, que não morrem, que tudo vêem, que podem tudo, que sustentam no Universo essa ordem imutável, inalterável, invariável, cuja magnificência e majestade estão acima de qualquer expressão.

Que esse temor vos preserve de toda ação, de todo pensamento que ofenda a piedade ou a justiça... Mas sinto que minha alma me abandona; sinto-o pelos sintomas que de ordinário anunciam a nossa dissolução.

Observação – Um espírita teria bem pouco a acrescentar a essas notáveis palavras, dignas de um filósofo cristão e onde se acham admiravelmente descritos os atributos especiais do corpo e da alma: o corpo material, destrutível, cujos elementos se dispersam, para unir-se aos elementos similares e que, durante a vida, só age por impulso do princípio inteligente; depois a alma, sobrevivendo ao corpo, conservando sua individualidade e gozando das maiores percepções quando desprendida da matéria; a liberdade da alma durante o sono; enfim, a ação da alma dos mortos sobre os vivos.

Além disso, pode ainda notar-se a distinção feita entre os deuses e a Divindade propriamente dita. Os deuses não passavam de Espíritos, em diferentes graus de elevação,encarregados de presidir, cada um em sua especialidade, a todas as coisas deste mundo, na ordem moral e na ordem material. Os deuses da pátria eram os Espíritos protetores da pátria, como os deuses lares o eram da família. Os deuses, ou Espíritos superiores, não se comunicavam aos homens senão por meio de Espíritos subalternos, chamados demônios. O vulgo não ia além disto; mas os filósofos e os iniciados reconheciam um Ser Supremo, criador e ordenador de todas as coisas.
R.E. , maio de 1864, p. 211