Demônio
Variedades
UMA TENTAÇÃO

Conhecemos pessoalmente uma senhora, médium dotada de notável faculdade tiptológica: obtém facilmente e, o que é bastante raro, quase constantemente, coisas de precisão, como nome de lugares e de pessoas em diversas línguas, datas e fatos particulares, em presença dos quais a incredulidade foi confundida mais de uma vez. Essa senhora, inteiramente devotada à causa do Espiritismo, consagra todo o tempo disponível ao exercício de sua faculdade, com o objetivo de propaganda, e isto com um desinteresse tanto mais louvável quanto a sua posição de fortuna chega muito perto da mediocridade. Como o Espiritismo, para ela, é uma coisa séria, começa sempre por uma prece, dita com o maior recolhimento, para atrair o concurso dos Espíritos bons, rogar a Deus que afaste os maus, e termina assim: “Se eu for tentada a abusar, seja no que for, da faculdade que Deus houve por bem me conceder, peço-lhe que ma retire, antes que seja desviada de seu objetivo providencial.”

Certo dia, um rico estrangeiro – foi ele mesmo que nos narrou o fato – procurou essa senhora para lhe pedir que desse uma comunicação. Ele não tinha a menor noção do Espiritismo e ainda menos a crença. Pondo a carteira sobre a mesa, disse-lhe: “Senhora, eis aqui dez mil francos que vos dou, se disserdes o nome da pessoa em quem estou pensando.” Basta isto para mostrar onde chegava o seu conhecimento da doutrina. A respeito, fez-lhe a médium observações que todo espírita verdadeiro faria em semelhante caso. Mesmo assim, tentou, mas nada obteve. Ora, logo depois da partida desse senhor ela recebeu, para outras pessoas, comunicações muito mais difíceis e complicadas do que a que ele lhe havia pedido.

Para esse senhor o fato deveria ser, conforme lhe dissemos, uma prova da sinceridade e da boa-fé da médium, porque os charlatães sempre têm recursos à sua disposição, quando se trata de ganhar dinheiro. Mas do fato resultam vários ensinamentos de outra gravidade. Os Espíritos quiseram provar-lhe que não é com dinheiro que os fazem falar, quando não querem; além disso, provaram que se não tinham respondido à pergunta, não fora por impossibilidade da parte deles, já que disseram, depois, coisas mais difíceis a pessoas que nada ofereciam. A lição era maior ainda para o médium; era demonstrar-lhe sua absoluta impotência sem o concurso deles e lhe ensinar a humildade, porque, se os Espíritos tivessem estado às suas ordens, se bastasse a sua vontade para os fazer falar, era o caso de exercer o poder agora ou jamais.

Eis aí uma prova manifesta em apoio do que dissemos na Revista de fevereiro último, a propósito do Sr. Home, sobre a impossibilidade em que se acham os médiuns de contar com uma faculdade que poderia faltar-lhes no momento em que lhes fosse necessária. Aquele que possui um talento e que o explora está sempre certo de o ter à sua disposição, porque é inerente à sua pessoa; mas a mediunidade não é um talento; só existe pelo concurso de terceiros; se esses terceiros se recusam, não há mais mediunidade. A aptidão pode subsistir, mas o seu exercício está anulado. Um médium sem a assistência dos Espíritos é como um violinista sem violino.

O senhor em questão admirou-se que, tendo vindo para se convencer, os Espíritos não se tivessem prestado para tanto; A isto lhe respondemos que, se pode ser convencido, sê-lo-á por outros meios, que nada lhe custarão. Os Espíritos não quiseram que ele pudesse dizer que fora convencido a peso de ouro, porque se o ouro fosse necessário para convencer, o que fariam os que não podem pagar? É para que a crença possa penetrar nos mais humildes redutos que a mediunidade não é um privilégio; acha-se em toda parte, a fim de que todos, pobres e ricos, possam ter a consolação de se comunicar com os parentes e amigos do alémtúmulo. Os Espíritos não quiseram que ele fosse convencido dessa maneira, porque o barulho que isto tivesse provocado teria falseado sua própria opinião e a de seus amigos quanto ao caráter essencialmente moral e religioso do Espiritismo. Eles não o quiseram no interesse do médium e dos médiuns em geral, cuja cupidez esse resultado teria superexcitado, porquanto diriam que se tiveram êxito naquela circunstância, podiam tê-lo igualmente em outras. Não é a primeira vez que foram feitas ofertas semelhantes, que prêmios são oferecidos, mas sempre sem sucesso, levando-se em conta que os Espíritos não dão o seu concurso nem se entregam a quem paga melhor.

Se essa senhora tivesse tido êxito, teria aceitado ou recusado? Ignoramos, porque dez mil francos são bastante sedutores, sobretudo em certas posições. Em todo o caso, a tentação foi grande. E quem sabe se a recusa não teria sido seguida de um pesar, que lhe tivesse atenuado o mérito? Notemos que, em sua prece, ela pede a Deus que lhe retire sua faculdade antes que seja tentada a desviá-la de seu objetivo providencial. Pois bem! Sua prece foi atendida; a mediunidade lhe foi retirada para esse caso especial, a fim de lhe poupar o perigo da tentação e todas as conseqüências lamentáveis que se lhe teriam seguido, primeiro para ela própria, e depois pelo efeito deletério que isto teria produzido.

Mas não é só contra a cupidez que os médiuns devem resguardar-se. Como os há em todas as camadas da sociedade, a maioria está acima desta tentação; mas há um perigo muito maior,pois a ele todos estão expostos: o orgulho, que põe a perder tão grande número. É contra esse escolho que as mais belas faculdades muitas vezes vêm aniquilar-se. O desinteresse material não tem proveito se não for acompanhado pelo mais completo desinteresse moral. Humildade, devotamento, desinteresse e abnegação são as qualidades do médium amado pelos Espíritos bons.

MANIFESTAÇÕES DE POITIERS3

Os fatos que noticiamos em nosso último número,sobre os quais havíamos deixado pendente a nossa opinião, parecem incluir-se definitivamente na esfera dos fenômenos espíritas. Um exame atento das circunstâncias de detalhes não os
permite confundir com atos de malevolência ou de esperteza. Parece difícil que pessoas mal-intencionadas pudessem escapar à atividade da vigilância exercida pela autoridade e, sobretudo, que possam agir no momento mesmo em que são espreitadas, sob os olhos daqueles que as buscam, aos quais, certamente, não falta boa vontade para as descobrir.

Tinham feito exorcismos, mas depois de alguns dias de suspensão, os barulhos recomeçaram com outro caráter. Eis o que a propósito disse o Journal de la Vienne, em seus números de 17 e 18 de fevereiro:

“Recordam-se que no mês de janeiro último, fazendo a sua solene aparição em Poitiers, os Espíritos batedores foram acampar na Rua Saint-Paul, na casa situada perto da antiga igreja do mesmo nome; mas sua estada entre nós tinha sido de curta duração e tinha-se o direito de pensar que tudo estava acabado, quando,3 Nota da Editora: Ver “Nota Explicativa”, p. 537. anteontem, os ruídos que tão fortemente haviam agitado a população se reproduziram com nova intensidade.

“Os diabos negros, pois, voltaram à casa da Srta. de O...; apenas não são mais Espíritos batedores, mas atiradores, agindo por meio de detonações formidáveis. Celebraremos sua festa no dia de Santa Bárbara, padroeira dos artilheiros. Sempre há os que se satisfazem com isto, as procissões de curiosos recomeçam e a polícia interroga todos os ecos para se guiar através do nevoeiro do outro mundo.

“Contudo, espera-se que desta vez se descubram os autores dessas mistificações de mau gosto e que a justiça saiba bem provar aos exploradores da credulidade humana que os melhores Espíritos não são os que fazem mais barulho, mas os que sabem calar e só falam o que convém.”

A. Piogeard

“Voltamos sempre à Rua Saint-Paul, sem poder penetrar o mistério infernal.

“Quando interrogamos uma pessoa que passeia com um ar preocupado diante da casa da Srta. de O..., invariavelmente ela responde: ‘De minha parte nada ouvi, mas alguém me disse que as detonações eram muito fortes.’ O que não deixa de ser muito embaraçoso para a solução do problema.

“Entretanto, é certo que os Espíritos possuem algumas peças de artilharia, inclusive de grosso calibre, porque o barulho resultante tem uma certa violência e dizem que se assemelha ao produzido por pequenas bombas.

“Mas, de onde vêm? Impossível até agora determinar a sua direção. Não provêm do subsolo, já que tiros de pistola dados no porão não se ouvem no primeiro andar.

“É, pois, nas regiões superiores que devem ser apanhados e, contudo, todos os processos indicados pela Ciência ou pela experiência para atingir esse resultado foram impotentes.

“Dever-se-ia, então, concluir que os Espíritos possam impunemente atirar sua pólvora nos pardais e perturbar o repouso dos cidadãos sem que seja possível alcançá-los? Esta solução seria muito rigorosa; com efeito, por certos processos, ou em virtude de alguns acidentes de terreno, podem produzir-se efeitos que, à primeira vista, surpreendem, mas dos quais se admiram, mais tarde, por não haverem compreendido o mecanismo elementar. São sempre as coisas mais simples que escapam à apreciação do homem.

“Somos fortemente levados a crer que, se os atiradores do outro mundo neste momento têm ao seu lado os que riem, estão longe de ser inatingíveis. Que se convençam os mistificadores: os mistificados terão sua vez.”

A. Piogeard

O Sr. Piogeard parece se debater singularmente contra a evidência. Dir-se-ia que, sem o saber, uma dúvida se insinua em seu pensamento; que teme uma solução contrária às suas idéias; numa palavra, dá-nos a impressão dessas pessoas que, recebendo uma má notícia, exclamam: “Não, isto não; isto é impossível; não posso acreditar!” e que tapam os olhos para não ver, a fim de poderem afirmar que nada viram. Por um dos parágrafos acima, parece lançar dúvida sobre a própria realidade dos ruídos, porque,em sua opinião, todos aqueles a quem interroga dizem nada ter ouvido. Se ninguém ouviu, não compreendemos por que tanto rumor, pois não haveria mal-intencionados nem Espíritos.

Num terceiro artigo sem assinatura e que o jornal diz ser o último, ele dá, enfim, a solução desse problema. Se os interessados não a julgarem categórica, será sua falta e não dele.

“Desde algum tempo temos recebido cartas, em cada correio, quer de nossos assinantes, quer de pessoas estranhas ao Departamento, nas quais nos pedem informações mais circunstanciadas sobre as cenas cujo teatro é a casa de O... Dissemos tudo quanto sabíamos; repetimos em nosso jornal tudo quanto se diz em Poitiers a esse respeito. Já que nossas explicações não pareceram completas, eis, pela última vez, nossa resposta às perguntas que nos são dirigidas:

“É perfeitamente certo que ruídos singulares são ouvidos todas as noites, de seis horas à meia-noite, na Rua Saint-Paul, na casa de O... Esses ruídos assemelham-se aos produzidos por descargas sucessivas de uma espingarda de dois canos; abalam as portas, as janelas e os tabiques. Não se percebe luz nem fumaça; não se sente nenhum odor. Os fatos foram constatados pelas pessoas mais dignas de fé de nossa cidade e por inquéritos da polícia, a pedido da família do Sr. conde de O...

“Existe em Poitiers uma associação de espiritistas; mas,a despeito da opinião do Sr. D..., que nos escreve de Marselha, não veio ao pensamento de nenhum dos nossos concidadãos, muito espirituosos para isto, que os espíritas tivessem algo a ver com a aparição dos fenômenos. O Sr. H..., de Orange, acredita em causas físicas, em gases que se desprendem de um antigo cemitério, sobre o qual teria sido construída a casa de O... Mas a casa é construída sobre a rocha e não existe nenhum subterrâneo que com ela se comunique.

“Por nossa conta, pensamos que fatos estranhos e ainda inexplicados, há mais de um mês perturbando o repouso de uma família honrada, não ficarão sempre no estado de mistério. Cremos numa fraude muito habilidosa e esperamos ver em breve os fantasmas da Rua Saint-Paul entrando na polícia correcional.”

A JOVEM OBSEDADA DE MARMANDE

(Continuação)

No número anterior relatamos a notável cura obtida por meio da prece, pelos espíritas de Marmande, de uma mocinha obsedada dessa cidade. Uma carta posterior confirma o resultado da cura, hoje completa. O semblante da jovem, alterado por oito meses de torturas, retomou seu viço, seu bom aspecto e sua serenidade.

Seja qual for a opinião que se tenha, a idéia que se faça do Espiritismo, qualquer pessoa animada de sincero amor do próximo deve ter-se alegrado de ver a tranqüilidade voltar a essa família, e o contentamento substituir a aflição. É lamentável que o Sr. cura da paróquia não tenha julgado dever associar-se a esse sentimento, e que a circunstância lhe tenha fornecido o texto de um sermão pouco evangélico numa de suas prédicas. Suas palavras,ditas em público, são do domínio da publicidade. Se ele se tivesse limitado a uma crítica leal da doutrina conforme seu ponto de vista,disso não falaríamos; mas julgamos dever refutar os ataques dirigidos contra pessoas muito respeitáveis, por ele tratadas de saltimbancos, a propósito do fato acima.

Disse ele: “Assim, o primeiro engraxate que vier poderá,então, se for médium, evocar um membro de uma família honrada, enquanto ninguém da família poderá fazê-lo? Não acrediteis nestes absurdos, meus irmãos; isto é trapaça, é tolice. De fato, que vedes nessas reuniões? Carpinteiros, marceneiros, que sei mais?... Algumas pessoas me perguntaram se eu havia contribuído para a cura da moça. Não, respondi-lhes; nada tenho a ver com isto; não sou médico”.

“Não vejo nisso”, dizia aos parentes, “senão uma afecção orgânica da alçada da Medicina”, acrescentando que se tivesse julgado que as preces pudessem operar algum alívio, ele as teria feito desde muito tempo.

Se o Sr. cura não crê na eficácia das preces em caso semelhante, agiu bem em não as fazer. Daí se pode concluir que, como homem consciencioso, se os pais lhe tivessem vindo pedir missas pela cura da jovem, teria recusado o pagamento, porque, caso o aceitasse, ter-se-ia feito pagar por uma coisa que considerava sem valor. Os espíritas crêem na eficácia da prece pelos doentes e nas obsessões; oravam, curavam e nada cobravam; mais ainda: se os pais estivessem passando necessidades, eles os teriam assistido. Diz ele: “São charlatães e saltimbancos.” Desde quando se viu charlatães trabalhando de graça? Fizeram a doente usar amuletos? Fizeram sinais cabalísticos? Pronunciaram palavras sacramentais,atribuindo-lhes uma virtude eficaz? Não, pois o Espiritismo condena toda prática supersticiosa; oravam com fervor, em comunhão de pensamento; essas preces eram malabarismos? Aparentemente não; já que tiveram êxito, é porque foram ouvidas.

Que o Sr. cura trate o Espiritismo e as evocações de absurdos e tolices é direito seu, se tal é sua opinião; ninguém tem nada com isto. Mas quando, para denegrir as reuniões espíritas, diz que aí só se vêem carpinteiros, marceneiros, etc., não é apresentar essas profissões como degradantes e os que as exercem como gente desprezível? Então esqueceis, Sr. cura, que Jesus era carpinteiro e que seus apóstolos eram todos pobres artesãos ou pescadores. Será evangélico lançar do alto do púlpito o desdém sobre a classe dos trabalhadores que Jesus quis honrar, nascendo entre eles? Compreendestes o alcance de vossas palavras, quando dissestes: “O primeiro engraxate que vier poderá, então, se for médium, evocar 0um membro de uma família honrada?” Então desprezais esse pobre engraxate, quando limpa os vossos sapatos? Ora vejam! Porque sua posição é humilde não o achais digno de evocar a alma de uma nobre personagem? Então temeis que essa alma se macule, quando, para ela, se erguerem ao céu mãos enegrecidas pelo trabalho? Então credes que Deus faça diferença entre a alma do rico e a do pobre? Não disse Jesus: Amai o próximo como a vós mesmos? Ora, amar o próximo como a si mesmo é não fazer nenhuma diferença entre si mesmo e o próximo; é a consagração do princípio: Todos os homens são irmãos, porque são filhos de Deus. Receberá Deus com mais distinção a alma do grande que a do pequeno? a do homem a quem fazeis um serviço pomposo, pago largamente, que a do infeliz, ao qual não concedeis senão as mais curtas preces? Falais do ponto de vista exclusivamente mundano e esqueceis que Jesus disse: “Meu reino não é deste mundo; lá não existem mais as distinções da Terra; lá os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos? Quando disse: “Há várias moradas na casa de meu pai”, significa que há uma para o rico e uma para o proletário? uma para o senhor e outro para o servo? Não; mas que há uma para o humilde e outra para o orgulhoso, pois ele disse: “Que aquele que quiser ser o primeiro no céu seja o servo de seus irmãos na Terra.” Então compete a esses a quem chamais profanos, vos lembrar o Evangelho?

Senhor cura, em qualquer circunstância tais palavras seriam pouco caridosas, sobretudo no templo do Senhor, onde só deveriam ser pregadas palavras de paz e de união entre todos os membros da grande família. No estado atual da sociedade são uma inabilidade, porque semeiam o fermento do antagonismo. Que tivésseis dito tais palavras numa época em que os servos, habituados a humilhar-se, se julgavam uma raça inferior, porque lho haviam dito, é compreensível; mas na França de hoje, em que todo homem honesto tem direito de levantar a cabeça, seja plebeu,seja patrício, é um anacronismo.

Se, como é provável, havia carpinteiros no auditório,marceneiros e engraxates, devem ter sido pouco tocados pelo sermão. Quanto aos espíritas, sabemos que pediram a Deus que perdoasse ao orador as suas palavras imprudentes, e que eles
mesmos perdoaram ao que lhes dizia Raca. É o conselho que damos a todos os irmãos.

RESUMO DA PASTORAL DO SR. BISPO DE ESTRASBURGO

Citamos pura e simplesmente a passagem dessa pastoral concernente ao Espiritismo, sem comentários e reflexões. Ao dar sua opinião a respeito, do ponto de vista teológico, o Sr.bispo está no seu direito e, desde que só ataca a coisa e não as pessoas, nada há a dizer. Só haveria que discutir sua teoria, o que já foi feito tantas vezes, sendo supérfluo repetir-se, tanto mais quando não encontramos nenhum argumento novo. Nós a submetemos aos nossos leitores, a fim de que todos possam tomar conhecimento e tirar o proveito que bem entenderem.

“O demônio oculta-se de todas as formas possíveis,para eternizar sua conspiração contra Deus e os homens, para continuar sua obra de sedução. No paraíso ele se disfarçou de serpente; se for preciso, ou se puder contribuir para a realização de seus projetos, transformar-se-á em anjo de luz, como o provam mil exemplos consignados na História.

“Em época mais recente, o demônio chegou a retirar do arsenal do inferno armas usadas e cobertas de ferrugem, de que se havia servido em tempos mais recuados, particularmente no segundo e terceiro séculos, para combater o Cristianismo. As mesas girantes, os Espíritos batedores, as evocações, etc., são outros tantos artifícios, e Deus os permite para castigo dos homens ímpios, curiosos e levianos. Se os maus gênios, como o asseguram as santas Escrituras, saturam o ar; se se unem aos homens em seus corpos e em suas almas (vede o livro de Job e muitas outras passagens da Escritura); se podem fazer falar um pau, uma pedra, uma serpente, cabras, uma jumenta; se, perto do lago de Genesaré recebem, a seu próprio pedido, permissão de entrar em animais imundos, também lhes é possível falar por meio das mesas, escrever com o pé de uma mesa ou de uma cadeira, adotar a linguagem e imitar a voz dos mortos e ausentes, contar coisas que nos são desconhecidas ou que nos pareçam impossíveis, mas que, como Espíritos, podem ver e ouvir. Infelizes, pois, os insensatos, ociosos,imprevidentes e criminosamente discretos, que buscam seu passatempo nesse malabarismo diabólico, que não temem recorrer a meios supersticiosos e proibidos, para chegarem ao conhecimento do futuro e de outros mistérios que o demônio ignora ou só conhece imperfeitamente! Quem ama o perigo perecerá no perigo; quem brinca com serpentes venenosas não escapará de seu dardo mortífero; quem se precipita nas chamas será reduzido a cinzas; quem busca a sociedade dos mentirosos e dos velhacos,necessariamente se tornará sua vítima. É um comércio com os anjos maus, ao qual os profetas do Antigo Testamento dão um nome que não se leva de boa vontade a um púlpito cristão. Quando se fazem essas evocações, o Espírito maligno bem poderá dizer,inicialmente, uma ou outra verdade, e falar conforme o desejo dos curiosos, a fim de lhes ganhar a confiança. Mas as pessoas impacientes de penetrar mistérios são seduzidas, deslumbradas; então se aproxima de seus lábios a taça envenenada; enchem-nas com toda a sorte de mentiras e de impiedades, despojam-nas de todos os princípios cristãos, de todos os sentimentos piedosos. Feliz o que percebe a tempo que caiu em mãos diabólicas e pode,com o auxílio de Deus, resistir aos laços com que ia ser carregado!...”

Enquanto os nossos antagonistas ficarem no terreno da discussão teológica, convidamos os irmãos que nos queiram escutar a abster-se de qualquer recriminação, porque a liberdade de opinião tanto deve existir para eles quanto para nós. O Espiritismo não se impõe: aceita-se; dá as suas razões e não acha mau que as combatam, desde que seja com armas leais, confiando no bomsenso do público para decidir. Se repousar na verdade, triunfará a despeito de tudo; se seus argumentos forem falsos, a violência não os tornará melhores. O Espiritismo não quer ser acreditado sob palavra; quer o livre exame; sua propaganda se faz dizendo: vede os prós e os contras; julgai o que melhor satisfaz o vosso julgamento,o que corresponde melhor às vossas esperanças e aspirações, o que mais vos toca o coração, e decidi-vos com conhecimento de causa.

Censurando nos adversários a inconveniência de palavras e o personalismo, os espíritas não devem incorrer na mesma falta; a moderação mostrou seu valor; nós os instamos a que não fujam disto. Em nome dos princípios espíritas e no interesse da causa, não nos solidarizamos com polêmicas agressivas e inconvenientes, venham de onde vierem.

Ao lado de alguns fatos lamentáveis, como o de Marmande, poderíamos citar um bom número de outros de caráter diverso, se não temêssemos contrariar os seus autores, razão por que só fazemos com a maior reserva.

Uma senhora que conhecemos pessoalmente, bom médium e, como o marido, fervorosa espírita, estava, há seis meses, à beira da morte; hauria na crença e na fé no futuro uma consoladora resignação nesse momento supremo, que via aproximar-se sem medo. A seu pedido, o cura da paróquia, ancião respeitável, lhe veio administrar os sacramentos. Disse ela: “Sabeis que somos espíritas. A despeito disto, dar-me-eis os sacramentos da Igreja? – Por que não? respondeu o bom cura; esta crença vos consola; torna-vos a ambos piedosos e caridosos. Não vejo mal nisso. Conheço O Livro dos Espíritos. Não direi que me tenha convencido em todos os pontos, mas contém a moral que todo cristão deve seguir e não vos censuro por o ler. Apenas se há Espíritos bons, também os há maus. É contra estes que vos deveis resguardar e vos empenhar em distinguir. Aliás, vede, minha filha, a verdadeira religião consiste na prece de coração e na prática das boas obras. Tendes fé em Deus, orais com fervor, assistis o vosso próximo tanto quanto podeis; posso, pois, vos dar a absolvição.”

UMA RAINHA MÉDIUM

Não teríamos tomado a iniciativa de publicar o fato seguinte; desde, porém, que foi reproduzido em diversos jornais, entre outros o Opinion nationale e o Siècle, de 22 de fevereiro de 1864, conforme o Bulletin diplomatique, não vemos motivo algum para nos abstermos.

“Uma carta procedente de pessoa bem informada revela que, recentemente, num conselho privado, onde era examinada a questão dinamarquesa, a rainha (Vitória) declarou que nada faria sem consultar o príncipe Alberto. E, com efeito, depois de se ter recolhido por algum tempo em seu gabinete, voltou dizendo que o príncipe se pronunciara contra a guerra. Esse fato, e outros semelhantes transpiraram e deram origem à idéia de que seria oportuno estabelecer uma regência.”

Tínhamos, pois, razão quando escrevemos que o Espiritismo tem adeptos até nos degraus dos tronos. Poderíamos ter dito: até nos tronos. Vê-se, porém, que os próprios soberanos não escapam à qualificação dada aos que acreditam nas comunicações de além-túmulo. Os espíritas, que são tratados como loucos, devem consolar-se por estarem em tão boa companhia. Assim, o contágio é muito grande, pois sobe tanto! Entre os príncipes estrangeiros sabemos de bom número que tem esta suposta fraqueza, pois alguns fazem parte da Sociedade Espírita de Paris. Como querem que a idéia não penetre a sociedade inteira, quando parte de todos os níveis da escala?

Por aí o Sr. cura de Marmande pode ver que não há médiuns só entre os engraxates.

O Journal de Poitiers, que relata o mesmo caso, o faz acompanhar desta reflexão:

“Cair assim no domínio dos Espíritos não é abandonar o das únicas realidades que têm direito de conduzir o mundo?”

Até certo ponto concordamos com a opinião do jornal, mas de outro ponto de vista. Para ele os Espíritos não são realidades, porque, segundo certas pessoas, só há realidade no que se vê e se toca. Ora, sendo assim, Deus não seria uma realidade e, no entanto, quem ousaria dizer que ele não conduz o mundo? que não há acontecimentos providenciais para levar a um determinado resultado? Pois bem! os Espíritos são os instrumentos de sua vontade; inspiram os homens, solicitam-nos, mau grado seu, a fazerem tal ou qual coisa, a agirem num sentido e não em outro, e isto tanto nas grandes resoluções quanto nas circunstâncias da vida privada. Sob esse aspecto, portanto, não somos da opinião do jornal.

Se os Espíritos inspiram de maneira oculta, é para deixar ao homem o livre-arbítrio e a responsabilidade de seus atos. Se receber inspiração de um Espírito mau, pode estar certo de receber, ao mesmo tempo, a de um bom, pois Deus jamais deixa o
homem sem defesa contra as más sugestões. Cabe a ele pesar e decidir conforme a sua consciência.

Nas comunicações ostensivas por via mediúnica não deve mais o homem renunciar ao livre-arbítrio; seria erro regular cegamente e sem exame todos os seus passos e atitudes pelo conselho dos Espíritos, porque existem os que ainda podem ter idéias e preconceitos da vida. Só os Espíritos superiores disso estão isentos. Os Espíritos dão seu conselho, sua opinião; em caso de dúvida, pode-se discutir com eles como se fazia quando eram vivos; então se pode avaliar a força de seus argumentos. Os Espíritos verdadeiramente bons jamais se recusam a isso; os que repelem qualquer exame, que exigem submissão absoluta, provam que contam pouco com a excelência de suas razões para convencer e devem ser tidos por suspeitos.

Em princípio, os Espíritos não nos vêm guiar como a uma criança; o objetivo de suas instruções é tornar-nos melhores, dar fé aos que não a têm e não o de nos poupar o trabalho de pensar por nós mesmos.

Eis o que não sabem os que criticam as relações de além-túmulo; acham-nas absurdas, porque as julgam conforme suas idéias, e não consoante a realidade, que desconhecem. Também não se deve julgar as manifestações pelo abuso ou pelas falsas aplicações que delas possam fazer algumas pessoas, assim como não seria racional julgar a religião pelos maus sacerdotes. Ora, para saber se há boa ou má aplicação de uma coisa, deve-se conhecê-la, não superficialmente, mas a fundo. Se fordes a um concerto para saber se a música é boa e se os músicos a executam bem, antes de tudo é preciso saibais música.

Isto posto, pode servir de base para apreciar o fato de que se trata. Censurariam a rainha se ela tivesse dito: “Senhores, o caso é grave, permiti que me recolha um instante e peça a Deus que me inspire na resolução que devo tomar?” O príncipe não é Deus, é verdade; mas como ela é piedosa, é provável que tenha pedido a Deus que inspirasse a resposta do príncipe, o que dá no mesmo. Ela o fez agir como intermediário, em razão da afeição que lhe tem.

As coisas podem ainda ter-se passado de outra maneira. Se, em vida do príncipe, a rainha tinha o hábito de nada fazer sem o consultar, morto ele, ela pergunta a sua opinião como se ele estivesse vivo, e não porque seja um Espírito, pois, para ela, ele não está morto; está sempre ao seu lado; é seu guia, seu conselheiro oficioso; não há entre ambos senão um corpo de menos. Se o príncipe vivesse, ela teria feito o mesmo; assim, não há nenhuma mudança em seu modo de agir.

Agora, era boa ou má a política do príncipe-Espírito? É o que não nos cabe examinar. O que devemos refutar é a opinião daqueles a quem parece bizarro, pueril, estúpido mesmo, que uma pessoa de bom-senso possa crer na realidade de quem não tem mais corpo, porque lhes agrada pensar que eles próprios, quando estiverem mortos, não serão mais absolutamente nada. A seus olhos a rainha não praticou um ato mais sensato do que se tivesse dito: “Senhores, vou interrogar minhas cartas, ou um astrólogo.”

Se esse fato é de somenos importância para a política,o mesmo não se dá do ponto de vista espírita, pela repercussão que teve. Sem dúvida a rainha podia abster-se de dar o motivo de sua ausência e que tal era o conselho do príncipe. Dizê-lo numa circunstância tão solene era, de certa forma, confessar publicamente a crença nos Espíritos e em suas manifestações, e reconhecer-se médium. Ora, quando tal exemplo vem de uma cabeça coroada, pode bem encorajar a opinião dos que estão menos altamente colocados.

Só podemos admirar a fecundidade dos meios empregados pelos Espíritos para obrigar os incrédulos a falar do Espiritismo e fazer sua idéia penetrar em todas as camadas da sociedade. Nesta circunstância, eles são obrigados a criticar com cautela.

PARTICIPAÇÃO ESPÍRITA

Recebemos do Havre uma participação de falecimento com esta subscrição:

“Rogamos

“Que Deus Todo-Poderoso e misericordioso e os Espíritos bons se dignem acolhê-la favoravelmente.”

“A carta trazia a menção: ‘Munida dos sacramentos da Igreja’.”

É a primeira vez, ao menos do nosso conhecimento,que semelhante profissão de fé pública tenha sido feita em semelhante circunstância. Deve-se ser grato à família pelo bom exemplo que acaba de dar. Em geral poucas pessoas, à exceção dos parentes mais próximos, levam em conta o pedido, contido na participação, de orar pelo defunto. Estamos convencidos de que todos os espíritas, mesmo estranhos à família, que a tiverem recebido, terão considerado como um dever cumprir o voto aí expresso. Para eles a prece não é uma fórmula banal; sabem a influência que exerce, no momento da morte, sobre o desprendimento da alma.

O SR. HOME EM ROMA

(Conclusão)

A ordem que tinha sido dada ao Sr. Home pelas autoridades pontifícias, de deixar Roma em três dias, tinha sido revogada, como vimos em nosso último número. Mas não se reprime o medo e mudaram de idéia; a licença de permanência foi retirada definitivamente, obrigando o Sr. Home, sob a acusação de feitiçaria, a partir imediatamente. É bom dizer que as batidas e o levantamento da mesa durante o interrogatório, que tínhamos relatado em forma dubitativa, pois não tínhamos certeza, são exatos. Isto devia ser um motivo a mais para pensar que o Sr. Home trazia consigo o diabo a Roma, onde jamais havia penetrado, ao que parece. Ei-lo, pois, bem e devidamente convicto, pelo governo romano, de ser um feiticeiro; não um feiticeiro para rir, mas um verdadeiro feiticeiro, pois, do contrário, não teriam levado a coisa a sério. Tivemos sob os olhos o longo interrogatório a que o submeteram, e a leitura, pela forma das perguntas, levou-nos involuntariamente aos tempos de Joana d’Arc; só faltava o desfecho comum da época para essas espécies de acusação. Os jornais brincalhões admiram-se de que no século dezenove ainda acreditem em feiticeiros. É que há pessoas que dormem o sono de Epimênides há quatro séculos. Aliás, como não acreditaria o povo, quando sua existência é atestada pela autoridade que a deve conhecer melhor, já que mandou queimar tanta gente? É preciso ser céptico como um jornalista para não se render a uma prova tão evidente. O que é mais surpreendente é que se façam reviver os feiticeiros nos espíritas, logo eles que vêm provar, com as peças nas mãos, que não há feiticeiros nem maravilhoso, mas apenas leis naturais.
R.E. , março de 1864, p. 106