Antuérpia
Notas Bibliográficas
REVISTA ESPÍRITA DE ANTUÉRPIA

Sob este título um novo órgão do Espiritismo acaba de surgir em Antuérpia, a partir de 1o de janeiro de 1864. Sabe-se que a Doutrina Espírita fez rápidos progressos nessa cidade, onde se formaram numerosas reuniões, compostas de homens eminentes pelo saber e pela posição social. Em Bruxelas, por mais tempo refratária, a idéia nova também ganha terreno, como em outras cidades da Bélgica. Uma sociedade espírita, formada recentemente,houve por bem pedir-nos que aceitássemos a presidência de honra; é dizer em que caminho ela se propõe andar.

O primeiro número da nova Revista contém: um apelo aos espíritas de Antuérpia, dois artigos de fundo, um sobre os adversários do Espiritismo, outro sobre o Espiritismo e a loucura; e um certo número de comunicações mediúnicas, algumas das quais em língua flamenga, e tudo, temos satisfação de dizer, em perfeita conformidade de vista e de princípios com a Sociedade de Paris. Essa publicação não pode deixar de ser acolhida favoravelmente num país onde as idéias novas têm uma tendência manifesta a se propagarem se, como esperamos, se mantiver à altura da ciência,condição essencial do sucesso.

O Espiritismo cresce e diariamente vê novos horizontes se abrirem à sua frente, aprofundando questões que, em sua origem, apenas tinham aflorado. Conformando-se com o desenvolvimento das idéias, os Espíritos têm, por toda parte, em suas instruções, seguido esse movimento ascensional; ao lado das produções mediúnicas de hoje, as de outrora são pálidas e quase pueris, embora, então, fossem consideradas magníficas; há entre elas a diferença do ensino dado a escolares e a adultos; é que, à medida que o homem cresce, sua inteligência, como o seu corpo,exige alimento mais substancial. Toda publicação espírita, periódica ou não, que ficasse na retaguarda do movimento, necessariamente encontraria pouca simpatia e seria ilusão imaginar os leitores de hoje interessados por coisas elementares ou medíocres; por melhor que seja a intenção, toda recomendação seria impotente para lhes dar vida, se não a têm por si mesmas.

Para publicações deste gênero há outra condição de sucesso, ainda mais importante: a de marchar com a opinião da maioria. Na origem das manifestações espíritas, as idéias, ainda não fixadas pela experiência, provocaram muitas opiniões divergentes, que caíram perante observações mais completas, ou só contam com raros representantes. Sabe-se a que bandeira e a que princípios está hoje ligada a imensa maioria dos espíritas do mundo inteiro. Tornar-se eco de algumas opiniões atrasadas, ou seguir um atalho,é condenar-se previamente ao isolamento e ao abandono. Os que o fizerem de boa-fé são dignos de lástima; os que agirem com intenção premeditada de interpor obstáculos e semear a divisão, só colherão vergonha. Nem uns, nem outros, podem ser encorajados por aqueles que defendem de coração os verdadeiros interesses do Espiritismo.

Quanto a nós, pessoalmente, e à Sociedade de Paris,nossas simpatias e nosso apoio moral, como se sabe, são conquistados antecipadamente por todas as publicações, como por todas as reuniões, que forem úteis à causa que defendemos.

RECONHECEMO-NOS NO CÉU

Pelo Rev. padre Blot, da Companhia de Jesus1

Um dos nossos correspondentes, o Dr. C..., nos indica este opúsculo e escreve o que se segue:

“Desde algum tempo, palavras que, como cristão e espírita, eu me abstenho de qualificar, têm sido pronunciadas muitas vezes por homens que receberam a missão de falar aos povos sobre caridade e misericórdia. Permiti-me, para suavizar as penosas impressões que elas vos devem ter causado, como a todo 1 Paris, 1863. 1 vol. pequeno in-18. – Preço: 1 fr. Livraria Poussielgue-Rusand, rue Cassette, no 27. homem verdadeiramente cristão, que vos fale de um livrinho do Rev. padre Blot. Não penso que seja espírita, mas encontrei em sua obra o que, no Espiritismo, faz amar a Deus e esperar em sua misericórdia, além de diversas passagens que tocam muito de perto o que ensinam os Espíritos.”

Nele destacamos as passagens seguintes, que confirmam a opinião do nosso correspondente:

“No sétimo século, o papa São Gregório, o Grande,depois de haver contado que um religioso vira, ao morrer, os profetas vindo à sua frente, inclusive designando seus nomes,acrescentou: ‘Este exemplo nos faz compreender claramente quão grande será o conhecimento que teremos uns dos outros na vida incorruptível do céu, pois esse religioso, mesmo numa carne corruptível, reconheceu os santos profetas, que jamais tinha visto.’

“Os santos se vêem reciprocamente, como o exigem a unidade do reino e a unidade da cidade onde vivem, em companhia do próprio Deus. Revelam espontaneamente uns aos outros os seus pensamentos e afeições, como as pessoas de uma mesma casa, unidas por sincero amor. Entre os seus concidadãos do céu,conhecem até os que não conheceram na Terra, e o conhecimento das belas ações os leva a um conhecimento mais completo daqueles que as realizaram (Berti, De theologicis disciplinis).

“Perdestes um filho, uma filha? recebei os consolos que um patriarca de Constantinopla dirigia a um pai desolado. Esse patriarca não pode mais ser contado entre os grandes homens, nem entre os santos: é Fócio, o autor do cisma cruel que separa o Oriente e o Ocidente, mas suas palavras apenas provam que, sobre este ponto, os gregos pensam como os latinos. Ei-las: Se vossa filha vos aparecesse; se, pondo as suas mãos nas vossas e sua fronte jovial em vossa fronte, ela vos falasse, não faria a descrição do céu? Depois acrescentaria: Por que vos afligir, ó meu pai? estou no paraíso, onde a felicidade não tem limites. Vireis um dia com minha mãe bem-amada e então constatareis que eu não disse demais deste lugar de delícias, pois a realidade está além de minhas palavras.”

Os Espíritos bons podem, pois, manifestar-se, ser vistos, tocar os vivos, falar com eles, descrever sua própria situação, vir consolar e fortificar os que amaram. Se podem falar e tomar a mão, por que não poderiam escrever? “Os gregos – diz o padre Blot – sobre este ponto pensam como os latinos.” Por que, então,hoje os latinos dizem que esse poder só é dado aos demônios para enganar os homens? A passagem seguinte é ainda mais explícita:

“São João Crisóstomo, numa de suas homilias sobre São Mateus, dizia a cada um de seus ouvintes: Desejais ver aquele que a morte vos levou? Levai a mesma vida que ele no caminho da virtude e em breve gozareis esta santa visão. Mas quereis vê-lo aqui mesmo? Oh! quem vo-lo impede? Isto vos é permitido e é fácil vêlo,se fordes ajuizados; porque a esperança dos bens futuros é mais clara que a própria vista.”

O homem carnal não pode ver o que é puramente espiritual. Se, pois, pode ver os Espíritos, é que eles têm uma parte material, acessível aos seus sentidos; é o envoltório fluídico, que o Espiritismo designa sob o nome de perispírito.

Após uma citação de Dante sobre o estado dos bemaventurados,o padre Blot acrescenta:

“Eis, pois, o princípio de solução para as objeções: No céu, que é menos um lugar que um estado, tudo é luz, tudo é amor.”

Assim, o céu não é um lugar circunscrito; é o estado das almas ditosas; por toda a parte onde forem felizes, estarão no céu, isto é, para elas tudo é luz, amor e inteligência. É o que dizem os Espíritos.

Fénelon, quando da morte do duque de Beauvilliers,seu amigo, escreveu à duquesa: “Não, só os sentidos e a imaginação perderam o objetivo. Aquele que não podemos mais ver está, mais que nunca, conosco. Encontramo-lo sem cessar em nosso centro comum. Ele aí nos vê e nos proporciona verdadeiros socorros. Aí conhece melhor que nós as nossas enfermidades, ele que não mais tem as suas; e pede os remédios necessários à nossa cura. Para mim,que estava privado de o ver há tantos anos, eu lhe falo, eu lhe abro o meu coração.” Fénelon ainda escrevia à viúva do duque de Chevreuse: “Unamo-nos de coração àquele a quem lamentamos; ele não se afastou de nós ao se tornar invisível; ele nos vê, nos ama, é tocado por nossas necessidades. Chegado felizmente ao porto, ora por nós que ainda estamos expostos ao naufrágio. Diz-nos com uma voz secreta: “Apressai-vos ao nosso encontro. Os Espíritos puros vêem, ouvem, amam sempre os verdadeiros amigos no seu centro comum. Sua amizade é imortal como sua fonte. Os incrédulos só amam a si mesmos; deveriam desesperar-se de perder os amigos para sempre; mas a amizade divina muda a sociedade visível numa sociedade de pura fé; ela chora, mas chorando, consola-se pela esperança de juntar-se a seus amigos no país da verdade e no seio do próprio amor.”

Para justificar o título de seu livro: Reconhecemo-nos no céu, o padre Blot cita grande número de passagens de escritores sacros, de aparições e de manifestações diversas, que provam a reunião, depois da morte, daqueles que se amaram, as relações existentes entre os mortos e os vivos, os auxílios que prestam mutuamente pela prece e pela inspiração. Em parte alguma fala da separação eterna, conseqüência da danação eterna, nem dos diabos,nem do inferno; ao contrário, mostra as almas mais sofredoras libertadas pela virtude do arrependimento e da prece, e pela misericórdia de Deus. Se o padre Blot lançasse anátema contra o Espiritismo, seria lançá-lo contra o seu próprio livro e contra todos os santos, cujo testemunho invoca. Sejam quais forem suas opiniões a esse respeito, diremos que se não o tivessem pregado senão nesse sentido, haveria menos incrédulos.

A LENDA DO HOMEM ETERNO

Pelo Sr. Armand Durantin2

O Espiritismo conquistou o seu lugar entre as crenças;se para alguns escritores é motivo de chacota, é de notar que entre os próprios que outrora o ridicularizavam, a zombaria baixou de tom diante do ascendente da opinião das massas, limitando-se a citar, sem comentários, ou com restrições mais comedidas, os fatos que a ele se referem. Outros, sem nele crer positivamente, e mesmo sem o conhecer a fundo, julgam a idéia muito importante para a transformarem em assunto de trabalhos de imaginação e de fantasia. Tal é, ao que nos parece, o caso da obra de que falamos. É um simples romance, baseado na crença espírita, apresentada do ponto de vista sério, mas ao qual podemos censurar alguns erros,oriundos, sem dúvida, de um estudo incompleto da matéria. O autor que quiser fantasiar um assunto histórico deve, antes de tudo,bem se penetrar da verdade do fato, a fim de não ficar à margem da História. Assim deverão fazer todos os escritores que quiserem tirar proveito da idéia espírita, seja para não serem acusados de ignorância do que falam, seja para conquistarem a simpatia dos adeptos, hoje bastante numerosos para pesar na balança da opinião e concorrer para o sucesso de toda obra que, direta ou indiretamente, diga respeito às suas crenças.

Feita esta reserva do ponto de vista da perfeita ortodoxia, a obra em questão não será menos lida com muito interesse pelos partidários, como pelos adversários do Espiritismo,e agradecemos ao autor a graciosa homenagem que houve por bem fazer-nos de seu livro, chamado a popularizar a idéia nova. Citaremos as passagens seguintes, que tratam mais especialmente da doutrina.

“À época em que o Sr. Boursonne (uma das principais personagens do romance) tinha perdido a esposa, uma doutrina 2 Um vol. in-12. Preço: 3 francos. Casa Dentu e na Livraria Central,boulevard des Italiens, no 24. mística espalhava-se secretamente, lentamente, propagando-se na sombra. Contava ainda poucos adeptos, mas não aspirava nada menos a substituir os vários cultos cristãos. Para tornar-se uma religião poderosa só lhe falta a perseguição.

“Esta religião é o Espiritismo, tão eloqüentemente exposto pelo Sr. Allan Kardec em sua notável obra O Livro dos Espíritos. Um de seus mais convictos adeptos era o conde de Boursonne.

“Acrescentarei apenas algumas palavras sobre essa doutrina, a fim de que os incrédulos compreendam que o misterioso poder do conde era absolutamente natural.

“Os espíritas reconhecem Deus e a imortalidade da alma. Crêem que a Terra lhes é um lugar de transição e de provação. Segundo eles, a alma é inicialmente colocada por Deus num planeta de ordem inferior. Aí fica encerrada num corpo mais ou menos grosseiro, até tornar-se bastante depurada para emigrar para um mundo superior. É assim que, após longas migrações e numerosas provações, as almas chegam, enfim, à perfeição e são admitidas no seio de Deus. Depende, pois, do homem abreviar suas peregrinações e chegar mais prontamente junto do Senhor,melhorando rapidamente.

É uma crença do Espiritismo, crença tocante, que as almas mais perfeitas podem entreter-se com os Espíritos. Assim, segundo os espíritas, podemos conversar com os seres amados que perdemos, se nossa alma for bastante aperfeiçoada par os ouvir e saber-se fazer escutar.

“São, pois, as almas melhoradas, os homens mais perfeitos entre nós, que podem servir de intermediários entre o vulgo e os Espíritos; esses agentes, tão ridicularizados pelo cepticismo, tão admirados e invejados pelos crentes, chamam-se, em linguagem espírita, médiuns.

“Explicado isto uma vez por todas, notemos de passagem que a Doutrina Espírita conta hoje os seus adeptos aos milhares, sobretudo nas grandes cidades, e que o Conde de Boursonne era um dos médiuns mais poderosos.”

Temos aqui um primeiro erro grave. Se fosse preciso ser perfeito para comunicar-se com os Espíritos, muito poucos desfrutariam desse privilégio. Os Espíritos se manifestam mesmo àqueles que deixam muito a desejar, precisamente para os levar, por seus conselhos, a melhorar-se, conforme estas palavras do Cristo: “Não são os sadios que precisam de médico.” A mediunidade é uma faculdade inerente ao organismo, mais ou menos desenvolvida, conforme os indivíduos, que pode ser dada ao mais indigno, como ao mais digno, arriscando-se o primeiro a ser punido se não a aproveita ou dela abusa. A superioridade moral do médium assegura-lhe a simpatia dos Espíritos bons e o torna apto a receber instruções de ordem mais elevada; mas a facilidade de comunicarse com os seres do mundo invisível, seja diretamente, seja por terceiros, é dada a cada um, visando o seu avanço. Eis o que o autor teria sabido se tivesse feito um estudo mais profundo da ciência espírita.

“A ciência moderna provou que tudo se encadeia. Assim, na ordem material, entre o infusório, último dos animais, e o homem, que é sua expressão mais elevada, existe uma cadeia de criaturas, melhoradas sucessivamente, como provam à saciedade as descobertas geológicas. Ora, os espíritas se perguntam por que não existiria a mesma harmonia no mundo espiritual; por que uma lacuna entre Deus e o homem, como o Sr. Le Verrier se perguntou como podia faltar um planeta em dado lugar do céu,considerando-se as leis harmoniosas que regem o nosso mundo
incompreensível e ainda desconhecido.

“Foi guiado pelo mesmo raciocínio que levou o eminente diretor do Observatório de Paris à sua maravilhosa dedução, que os espíritas chegaram a reconhecer seres imateriais entre o homem e Deus, antes de haverem tido a prova palpável, adquirida mais tarde.

Aqui, igualmente, há outro erro capital. O Espiritismo foi conduzido às suas teorias pela observação dos fatos, e não por um sistema preconcebido. O raciocínio de que fala o autor era racional, sem dúvida, mas não foi assim que as coisas se passaram. Os espíritas concluíram pela existência dos Espíritos porque estes se manifestaram espontaneamente; eles indicaram a lei que rege as relações entre o mundo visível e o invisível, porque observaram essas relações; admitiram a hierarquia progressiva dos Espíritos porque estes se lhes mostraram em todos os graus de adiantamento; adotaram o princípio da pluralidade das existências não só porque os Espíritos lho ensinavam, mas porque esse princípio resulta, como lei da Natureza, da observação dos fatos que temos sob os olhos. Em síntese, o Espiritismo nada admitiu a título de hipótese prévia; tudo em sua doutrina é o resultado da experiência. Eis tudo que temos repetido muitas vezes em nossas obras.

Julgamos útil trazer este aviso ao conhecimento das pessoas a quem possa interessar.

Ao receber qualquer carta o primeiro cuidado é ver a assinatura. Na ausência desta ou de designação suficiente, a carta é jogada imediatamente no cesto, sem ser lida, ainda que traga a menção: Um dos vossos assinantes, um espírita, etc. Estes últimos, tendo menos razões que os outros para guardarem o anonimato em relação a nós, por isso mesmo tornam suspeita a origem de suas cartas, razão por que nem mesmo lhes tomamos conhecimento, já que a correspondência autêntica é muito numerosa e suficiente para absorver a atenção. A pessoa encarregada de fazer a sua verificação tem instrução formal de rejeitar sem exame toda carta da natureza das de que falamos.

Allan Kardec
R.E. , fevereiro de 1864, p. 83