Dogma
Algumas Refutações

(2o artigo – Ver o número de maio)
Toda idéia nova encontra forçosamente oposição, por parte daqueles cujas opiniões e interesses contraria. Julgam alguns que a Igreja está comprometida – pensamos que não, mas nossa opinião não faz lei – razão por que nos atacam em seu nome com um furor ao qual só faltam as grandes execuções da Idade Média. Os sermões, as instruções pastorais lançam raios em todas as direções; as brochuras e artigos de jornais chovem em grande quantidade, na maioria com um cinismo de expressão pouquíssimo evangélico. Em vários deles é um raio que toca o frenesi. Por que, então, essa exibição de força e tanta cólera? Porque dizemos que Deus perdoa à criatura que se arrepende e que as penas só seriam eternas para aquelas que jamais se arrependessem, e porque proclamamos a bondade e a clemência de Deus, somos heréticos votados à execração e a sociedade está perdida. Apontam-nos como perturbadores; desafiam a autoridade a nos perseguir em nome da moral e da ordem pública; alegam que aquela não cumpre o seu dever deixando-nos tranqüilos!

Aqui se apresenta um problema interessante. Perguntase por que essa violência contra o Espiritismo, e não contra tantas outras teorias filosóficas ou religiosas muito menos ortodoxas? A Igreja fulminou o materialismo, que tudo nega, como o faz contra o Espiritismo, que se limita à interpretação de alguns dogmas? Esses dogmas e muitos outros não foram tantas vezes negados,discutidos, polemizados numa porção de escritos que ela deixa passar despercebidos? Os princípios fundamentais da fé – Deus, a alma e a imortalidade – não foram publicamente atacados sem que ela se perturbasse? Jamais o saint-simonismo, o fourierismo, a própria Igreja do padre Chatel levantaram tantas cóleras, sem falar de outras seitas menos conhecidas, tais como os fusionistas, cujo chefe acaba de morrer, que têm um culto, seu jornal e não admitem a divindade do Cristo; os católicos apostólicos, que não reconhecem o papa, que têm seus padres e bispos casados, suas igrejas em Paris e nas províncias, onde batizam, casam e promovem cerimônias fúnebres. Por que, então, o Espiritismo, que não tem culto nem igreja, e cujos padres só existem na imaginação, levanta tanta animosidade? Coisa bizarra! o partido religioso e o partido materialista, que são a negação um do outro, dão-se as mãos para nos pulverizar, segundo dizem. Realmente o espírito humano apresenta caprichos singulares quando enceguecido pela paixão, e a história do Espiritismo terá coisas divertidas para registrar.

A reposta está por inteiro nesta conclusão da brochura do Rev. Pe. Nampon22: “Em geral nada é mais abjeto, mais degradante, mais vazio de fundo e de atrativo na forma que tais publicações,cujo sucesso fabuloso é um dos sintomas mais alarmantes de nossa época. Destruí-os, pois, e nada perdereis com isso. Com o dinheiro gasto em Lyon para essas inépcias, facilmente se teriam criado mais leitos nos hospitais de alienados, superlotados desde a invasão do Espiritismo. E que faremos dessas brochuras perniciosas? Faremos o mesmo que fez o grande apóstolo em Éfeso; e assim agindo conservaremos em nosso meio o império da razão e da fé, preservando as vítimas dessas lamentáveis ilusões 22 Discurso pregado na igreja primacial de São João Batista, na presença de Sua Eminência o cardeal arcebispo de Lyon, nos dias 14 e 21 de dezembro de 1862, pelo reverendo padre Nampom, da Companhia de Jesus, pregador do Advento. de uma porção de decepções na vida presente e das chamas da eternidade infeliz.”

Esse sucesso fabuloso é que confunde os nossos adversários. Eles não podem compreender a inutilidade de tudo quanto fazem para travar essa idéia que passa por cima de suas ciladas, endireita-se sob os seus golpes e prossegue sua marcha ascendente sem se preocupar com as pedras que lhe atiram. Isto é um fato indubitável e constatado muitas vezes pelos adversários desta ou daquela categoria, em suas prédicas e publicações. Todos deploram o progresso incrível dessa epidemia, que ataca até os homens de ciência, os médicos e os magistrados. Na verdade é preciso voltar do Texas para dizer que o Espiritismo está morto e ninguém mais fala dele. (Vide a Revista de fevereiro de 1863.)

Que fazemos para triunfar? Vamos pregar o Espiritismo nas praças? Convocamos o público às nossas reuniões? Temos missionários de propaganda? Contamos com o apoio da imprensa? Temos, enfim, todos os meios de ação, ostensivos e secretos, que possuís e usais com tanta prodigalidade? Não; para recrutar partidários temos mil vezes menos trabalho do que vós para os desviar. Contentamo-nos em dizer: “Lede; e se isto vos convém, voltai a nós.” Fazemos mais, dizendo: “Lede os prós e os contras e comparai.” Respondemos aos vossos ataques sem fel,sem animosidade, sem acrimônia, porque não temos cólera. Longe de nos lamentarmos da vossa, nós a aplaudimos, porque ela serve à nossa causa. Eis entre milhares uma prova da força persuasiva dos argumentos dos nossos adversários. Um senhor que acaba de escrever à Sociedade de Paris, pedindo para dela fazer parte, assim começa sua carta: “A leitura de: A Questão do Sobrenatural, os mortos e os vivos, do Padre Matignon; A Questão dos Espíritos, do Sr. de Mirville; O Espírito batedor, do Dr. Bronson, e, finalmente, diversos artigos contra o Espiritismo, não fizeram senão que eu aderisse completamente à doutrina exposta em O Livro dos Espíritos e me deram o mais vivo desejo de fazer parte da Sociedade Espírita de Paris, para poder continuar o estudo do Espiritismo de maneira mais seguida e mais proveitosa.”

Por vezes a paixão cega, a ponto de fazer cometer singulares inconseqüências. Na passagem citada acima, o Rev. Pe. Nampon diz que “nada é mais vazio de atrativo que essas publicações,cujo sucesso fabuloso, etc.” Não percebe ele que essas duas proposições se destroem reciprocamente; uma coisa sem atrativo não poderia ter nenhum sucesso, porquanto só o terá com a condição de ter atrativo; com mais forte razão quando o sucesso é fabuloso.

Acrescenta que com o dinheiro gasto em Lyon com essas inépcias, facilmente teriam sido criados mais leitos nos hospícios de alienados daquela cidade, superlotados desde a invasão do Espiritismo. É verdade que seriam precisos trinta a quarenta mil leitos, só em Lyon, já que todos os espíritas são loucos. Por outro lado, visto que são inépcias, nenhum valor possuem. Por que, então, lhes dar as honras de tantos sermões,pastorais e brochuras? Quanto à questão do emprego de dinheiro, sabemos que em Lyon muita gente, por certo animada de maus sentimentos, havia dito que os dois milhões fornecidos por esta cidade aos cofres de São Pedro teriam dado mais pão a muitos operários infelizes durante o inverno, ao passo que a leitura dos livros espíritas lhes deu coragem e resignação para suportar sua miséria sem revolta.

O Pe. Nampon não é feliz em suas citações. Numa passagem de O Livro dos Espíritos ele nos faz dizer: “Há tanta distância entre a alma do animal e a alma do homem, quanto entre a alma do homem e a alma de Deus.” (No 597). Nós dissemos: ...quanto entre a alma do homem e Deus, o que é muito diferente. A alma de Deus implica uma espécie de assimilação entre Deus e as criaturas corpóreas. Compreende-se a omissão de uma palavra por inadvertência ou erro tipográfico; mas não se acrescenta uma palavra sem intenção. Por que essa adição, que desnatura o sentido do pensamento, senão para dar um tom materialista aos olhos dos que se contentarem em ler a citação sem a verificar no original? Um livro que apareceu pouco antes de O Livro dos Espíritos, e que contém toda uma teoria cosmogônica, faz de Deus um ser muito diversamente material, porque composto de todos os globos do Universo, moléculas do ser universal, que tem um estômago, come e digere, e do qual os homens são o mau produto de sua digestão; contudo, nem uma palavra foi dita para o combater: todas as cóleras se concentraram sobre O Livro dos Espíritos. Será, talvez, porque em seis anos chegou à décima edição e espalhou-se em todos os países do mundo?

Não se contentam em criticar: truncam e desnaturam as máximas para aumentar o horror que deve inspirar essa abominável doutrina e nos pôr em contradição conosco mesmo. É assim que diz o Pe. Nampon, citando uma frase da introdução de O Livro dos Espíritos, página XXXIII: “Certas pessoas, dizei vós mesmos,entregando-se a esses estudos perderam a razão.” Damos assim a impressão de reconhecer que o Espiritismo conduz à loucura, ao passo que, lendo todo o parágrafo XV, a acusação cai precisamente sobre aqueles que a lançam. É assim que, tomando um trecho da frase de um autor, poderíamos levá-lo à forca. Os mais sagrados autores não escapariam a essa dissecção. É com tal sistema que certos críticos esperam mudar as tendências do Espiritismo e fazer crer que ele preconiza o aborto, o adultério, o suicídio, quando demonstra peremptoriamente a sua criminalidade e as funestas conseqüências para o futuro.

O Pe. Nampon chega mesmo a apropriar-se de citações feitas com o objetivo de refutar certas idéias. “O autor – diz ele – às vezes chama Jesus-Cristo Homem-Deus; mas alhures (O Livro dos Médiuns, página 368), num diálogo com um médium que, tomando o nome de Jesus lhe dizia: “Eu não sou Deus, mas sou seu filho”, logo replica: “Então sois Jesus? Sim – acrescenta o Pe. Nampon – Jesus é chamado Filho de Deus, mas na acepção ariana,não sendo, portanto, consubstancial com o Pai.”

Antes de mais, não era o médium que se fazia passar por Jesus, mas um Espírito, o que é muito diferente. A citação é feita precisamente para mostrar a velhacaria de certos Espíritos e prevenir os médiuns contra seus subterfúgios. Pretendeis que o Espiritismo negue a divindade do Cristo ou vistes tal proposição formulada em princípio? É, dizeis vós, a conseqüência de toda a doutrina. Ah! se entrarmos no terreno das interpretações,poderemos ir mais longe do que quereis. Se disséssemos, por exemplo, que o Cristo não tinha chegado à perfeição, que teve necessidade das provas da vida corpórea para progredir; que a sua paixão lhe tinha sido necessária para subir em glória, teríeis razão,porque dele não faríamos sequer um Espírito puro, enviado à Terra com missão divina, mas um simples mortal, a quem o sofrimento era necessário, a fim de progredir. Onde encontrais que tenhamos dito isto? Pois bem! aquilo que nunca dissemos, que jamais diremos, sois vós que dizeis.

Ultimamente temos visto, no parlatório de uma casa religiosa de Paris, a seguinte inscrição, impressa em letras grandes e afixada para a instrução de todos: “Foi preciso que o Cristo sofresse para entrar na sua glória, e não foi senão depois de ter bebido a longos sorvos na torrente da tribulação e do sofrimento que foi elevado ao mais alto dos céus.” (Salmo 109, v. 8.) É o comentário deste versículo, cujo texto é: “Ele beberá no caminho a água da torrente e é por ali que erguerá a cabeça (De torrente in via bibet: propterea exultabit caput)” 23. Se, pois, “foi preciso que o Cristo sofresse para entrar na sua glória; se não pôde ser elevado ao mais alto dos céus senão pelas tribulações e pelo sofrimento”, é que antes nem estava na glória nem no mais alto dos céus; por conseguinte não era Deus. Seus sofrimentos, pois, não aproveitavam somente à Humanidade, desde que necessários ao seu próprio adiantamento. Dizer que o Cristo tinha necessidade de 23 N. do T.: O comentário referido não corresponde ao salmo citado. sofrer para elevar-se é dizer que não era perfeito antes de sua vinda. Não conhecemos protesto mais enérgico contra a sua divindade. Se tal é o sentido do versículo do salmo que se canta nas vésperas24, todos os domingos cantam a não divindade do Cristo.

Com o sistema de interpretação vai-se muito longe,dizíamos nós. Se quiséssemos citar a de alguns concílios sobre este outro versículo: “O Senhor está a vossa direita; ele destruirá os reis no dia de sua cólera”, seria fácil provar que daí foi tirada a justificação do regicídio.

Diz ainda o Pe. Nampon: “A vida muda inteiramente de aspecto (com o Espiritismo). A imortalidade da alma reduz-se a uma permanência material, sem identidade moral, sem consciência do passado.”

É um erro. O Espiritismo jamais disse que a alma ficasse sem consciência do passado. Ela perde momentaneamente a sua lembrança durante a vida corpórea, mas “quando o Espírito volta à vida anterior (a vida espírita), diante dos olhos se lhe estende toda a sua vida pretérita. Vê as faltas que cometeu e que deram causa ao seu sofrer, assim como de que modo as teria evitado. Reconhece justa a situação em que se acha e busca então uma existência capaz de reparar a que acaba de transcorrer.” (O Livro dos Espíritos, no 393). Uma vez que há lembrança do passado,consciência do ser, há, então, identidade moral; desde que a vida espiritual é a vida normal do Espírito, que as existências corpóreas não passam de pontos na vida espírita, a imortalidade não se reduz a uma permanência material. Como se vê, o Espiritismo diz exatamente o contrário. Desnaturando-o assim, o Pe. Nampon não tem a desculpa da ignorância, porque suas citações provam que leu,mas se equivoca ao truncar citações e ao fazê-lo dizer o contrário do que diz. 24 N. do T.: Na liturgia católica, a parte do ofício divino que ocorre à tarde, entre 15 e 18 horas. (Grifo nosso). O Espiritismo é acusado por alguns de estribar-se no mais grosseiro materialismo, porque admite o perispírito, que tem propriedades materiais. É ainda uma falsa conseqüência, tirada de um princípio referido incompletamente. O Espiritismo jamais confundiu a alma com o perispírito, que não passa de um envoltório,como o corpo é um outro. Tivesse ela dez envoltórios e isto nada tiraria à sua essência imaterial. Já o mesmo não se dá com a doutrina adotada pelo concílio de Viena, no Dauphiné, na sua segunda sessão, em 3 de abril de 1312. Segundo essa doutrina, “a autoridade da Igreja ordena crer que a alma não passa da forma substancial do corpo; que não há idéias inatas e declara heréticos os que negarem a materialidade da alma.” Raul Fornier, professor de Direito ensina positivamente a mesma coisa em seus discursos acadêmicos, impressos em Paris em 1619, com aprovação e elogios
de vários doutores em teologia.

É provável que o concílio, baseando-se nos fatos de numerosas manifestações espíritas visíveis e tangíveis, referidas nas Escrituras, manifestações que não deixam de ser materiais, pois ferem os sentidos, tenha confundido a alma com o envoltório fluídico ou perispírito, cuja distinção o Espiritismo demonstra. Sua doutrina é, pois, menos materialista que a do concílio.

“Mas abordemos sem hesitar o homem da França, que é o mais adiantado nesses estudos. Para constatar a identidade do Espírito que fala, é preciso, diz o Sr. Allan Kardec, estudar sua linguagem. Pois bem! Que seja! Conhecemos por seus escritos autênticos o pensamento certo e, conseguintemente, a linguagem de São João, São Paulo, Santo Agostinho, Fénelon, etc. Como, pois, em vossos livros, ousais atribuir a esses grandes gênios pensamentos e sentimentos inteiramente contrários aos que ficaram para sempre consignados em suas obras?”

Assim, admitis que essas personagens em nada se enganaram; que tudo quanto escreveram é a expressão da verdade; que se hoje voltassem corporalmente deveriam ensinar tudo o que ensinaram outrora; que, vindo como Espírito, não devem renegar nenhuma de suas palavras. Entretanto, Santo Agostinho olhava como heresia a crença na redondeza da Terra e nos antípodas. Sustentava a existência dos íncubos e súcubos e acreditava na procriação pelo comércio dos homens com os Espíritos. Credes que a tal respeito e como Espírito não possa pensar de modo diverso do que pensava como homem e que hoje professasse essas doutrinas? Se suas idéias houveram de modificar-se em certos pontos, podem perfeitamente ter sido mudadas em outros. Se se enganou, logo ele, gênio incontestavelmente superior, por que vós mesmos não vos enganaríeis? Para respeitar a ortodoxia será preciso negar a Agostinho o direito, melhor dizendo, o mérito de retratar-se de seus erros?

“Atribuís a São Luís esta sentença ridícula, sobretudo em sua boca, contra a eternidade das penas: Supor Espíritos incuráveis é negar a lei do progresso.” (O Livro dos Espíritos, no 1007).

Não é assim que ela é formulada. À pergunta: Haverá Espíritos que nunca se arrependam? respondeu São Luís: “Há os de arrependimento muito tardio; porém, pretender-se que nunca se melhorarão fora negar a lei do progresso e dizer que a criança não pode tornar-se homem.” A primeira forma poderia parecer ridícula. Por que, então, sempre truncar e desnaturar as frases? A quem pensam enganar? aos que apenas lerem esses comentários inexatos? Mas seu número é muito pequeno, perto dos que querem conhecer o fundo das coisas sobre as quais vós mesmos chamais a atenção. Ora, a comparação não pode senão favorecer o Espiritismo.

Nota – Para a edificação de todos, recomendamos a leitura da brochura intitulada: Do Espiritismo, pelo Rev. Pe. Nampon, da Companhia de Jesus, Livraria Girard et Josserand, Lyon, place Bellecour, no 30; Paris, rue Cassette, no 5. Rogamos também ler em O Livro dos Espíritos e em O Livro dos Médiuns os textos completos,citados resumidamente ou deturpados na brochura acima referida.
R.E. , junho de 1863, p. 234