Devaneio
Dissertações Espíritas
Recebidas ou lidas na Sociedade por diversos médiuns
DEVANEIO
Vou contar-te uma história do outro mundo, onde me encontro. Imagina um céu azul, um mar calmo e verde, rochedos bizarramente talhados; nenhuma vegetação, a não ser os pálidos liquens agarrados às fendas das pedras. Eis a paisagem. Como simples romancista, não posso comprazer-me em te dar mais detalhes. Para povoar este mar, estes rochedos, só se achava um poeta, sentado, sonhando, refletindo em sua alma, como num espelho, a suave beleza da Natureza, que não falava menos ao coração do que aos olhos. Este poeta, este sonhador, era eu. Onde? Quando se passa a minha história? Que importa!

Assim eu escutava, olhava, comovido e trespassado pelo encanto impenetrável da grande solidão. De repente vi surgir uma mulher, de pé, no penacho do rochedo. Era alta, morena e pálida. Os longos cabelos negros flutuavam sobre o vestido branco. Olhava direto em frente, com estranha firmeza. Eu me havia levantado, extasiado de admiração, porque aquela mulher, florescendo de repente no rochedo, parecia o próprio devaneio, o divino devaneio, que tantas vezes eu havia evocado com singular enlevo. Aproximei-me. Sem se mover, estendeu o braço nu e soberbo para o mar e, como que inspirada, cantou com voz suave e lamentosa. Eu a ouvia, assaltado por uma tristeza mortal, e repetia mentalmente as estrofes que deslizavam de seus lábios, como de uma fonte viva. Então ela se voltou para mim e fui como que envolvido pela sombra de suas alvas vestes.

– Amigo, disse ela, escuta-me. Menos profundo é o mar de ondas inconstantes, menos implacáveis são os rochedos do que o amor, o cruel amor que dilacera um coração de poeta. Não escutes a sua voz, que se apodera de todas as seduções da onda, do ar, do sol, para estreitar, penetrar e queimar sua alma, que treme e deseja sofrer o mal do amor. Assim falava. Eu a ouvia e sentia o coração fundir-se numa divina ebriedade. Desejaria aniquilar-me no hálito puro que emanava de sua boca.

– Não, continuou ela; amigo, não lutes contra o gênio que te domina. Deixa-te levar em suas ardentes asas pelas esferas radiosas. Esquece, esquece a paixão que te fará rastejar, a ti, águia destinada aos píncaros elevados. Escuta as vozes que te chamam aos celestes concertos. Alça o teu vôo, ave sublime; o gênio é solitário. Marcado pelo selo divino, não podes tornar-te escravo de uma mulher.

Ela falava, a sombra avançava e o mar, de verde que era, tornara-se negro; o céu se vestia de trevas e os rochedos se perfilavam, sinistros. Mais radiosa ainda, parecia coroar-se de estrelas, que acendiam suas luzes cintilantes, enquanto sua túnica, alva como a espuma que açoitava a praia, desdobrava-se em pregas imensas.

– Não me deixes, disse-lhe eu finalmente. Leva-me em teus braços; deixa que teus negros cabelos sirvam de laço para me reterem cativo; deixa-me viver em tua luz ou morrer à tua sombra.

– Vem, então, retomou ela com voz clara, embora parecesse distante. Vem, já que preferes o devaneio, que entorpece o gênio, ao gênio, que esclarece os homens. Vem; não te deixarei mais; e feridos pelo golpe mortal, seguiremos enlaçados, como o grupo de Dante. Não temas que te abandone, ó meu poeta! O devaneio te consagra para a desgraça e para o desdém dos homens, que só bendirão teus cantos quando não mais se sentirem irritados ante o esplendor de teu gênio.

Então senti que poderoso abraço me levantava do solo. Nada mais vi, a não ser as níveas vestes a me envolverem como uma auréola. E fui arrebatado pelo poder do devaneio, que me separava para sempre dos homens.

Alfred de Musset

SOBRE OS TRABALHOS DA SOCIEDADE

Falarei da necessidade de ser observada maior regularidade nas vossas sessões, isto é, de evitar-se toda confusão, toda divergência de idéias. A divergência favorece a substituição dos Espíritos bons pelos maus e, quase sempre, são estes que primeiro se apoderam das perguntas feitas. Por outro lado, numa reunião composta de elementos diversos, e desconhecidos uns dos outros, como evitar as idéias contraditórias, as distrações, ou, pior ainda, uma vaga e zombeteira indiferença? Eu gostaria de encontrar um meio eficaz e certo para isso. Talvez esteja na concentração dos fluidos espalhados em redor dos médiuns. Somente eles, sobretudo os que são amados, retêm os Espíritos bons na sessão. Sua influência é suficiente para dissipar a turba dos Espíritos brincalhões. O trabalho de exame das comunicações é excelente. Não seria demais que se aprofundassem as perguntas e,principalmente, as respostas. O erro é fácil, mesmo para os Espíritos animados das melhores intenções. A lentidão da escrita,durante a qual o Espírito se desvia do assunto, que esgota tão logo o concebe; a imobilidade e a indiferença por certas formas convencionais, todas essas razões e muitas outras vos devem levar apenas a uma confiança limitada, e sempre subordinada ao exame,mesmo quando se trata das mais autênticas comunicações. Dito isto, que Deus tome sob a sua santa guarda todos os verdadeiros espíritas.
Georges (Espírito familiar)
Allan Kardec
R.E. , setembro de 1860, p. 423