Nazara
Uma Noite Esquecida ou a Feiticeira Manouza
MILÉSIMA SEGUNDA NOITE DOS CONTOS ÁRABES
Ditada pelo Espírito Frédéric Soulié

(Segundo artigo)
Observação – Os algarismos romanos indicam as interrupções que ocorreram no ditado. Freqüentemente não era retomado senão após duas ou três semanas e, apesar disso, como já fizemos observar anteriormente, o relato se desenvolve como se tivesse sido escrito de um só fôlego; e isso não constitui uma das características menos curiosas desta produção de além-túmulo. O estilo é correto e perfeitamente apropriado ao assunto. Repetimos,para aqueles que poderiam ver no ditado uma coisa fútil, que não o consideramos como obra filosófica, mas como estudo. Para o observador, nada é inútil: ele sabe aproveitar-se de tudo para aprofundar a ciência espírita que estuda.

III

Nada, entretanto, parecia perturbar a nossa felicidade;tudo era calmo à nossa volta. Vivíamos em perfeita segurança quando, uma noite, no momento em que nos julgávamos mais seguros, apareceu, de repente, aos nossos lados (posso dizer assim porque estávamos numa rotunda, para onde confluíam várias aléias) o sultão, acompanhado de seu grão-vizir. Ambos apresentavam uma expressão apavorante: a cólera havia transtornado as suas fisionomias; estavam, principalmente o sultão, numa exasperação facilmente compreensível. O primeiro pensamento do sultão foi mandar matar-me, mas, sabendo a que família pertenço e a sorte que o esperava, caso ousasse arrancar um só fio de cabelo da minha cabeça, fez de conta (à sua chegada eu me jogara para o lado) que não me tinha visto e precipitou-se como um furioso sobre Nazara, a quem prometeu não fazer demorar o castigo que ela merecia. Levou-a consigo, sempre acompanhado do vizir. Quanto a mim, passado o primeiro momento de susto, apressei-me a voltar ao meu palácio a fim de buscar um meio de subtrair a estrela de minha vida das mãos daquele bárbaro, que, provavelmente, iria destruir essa preciosa existência.

– E depois, que fizeste? perguntou Manouza; porque,afinal de contas, não vejo em tudo isso razão de te atormentares tanto para tirar tua amante do perigo em que a colocaste por tua própria culpa. A mim pareces um pobre homem que não tem coragem nem vontade quando se trata de coisas difíceis.

– Antes de condenar, Manouza, deves escutar. Não vim a ti sem antes haver examinado todos os meios ao meu alcance. Fiz ofertas ao sultão: prometi-lhe ouro, jóias, camelos e até palácios, se ele devolvesse minha doce gazela. Desdenhou de tudo. Vendo repelidos os meus sacrifícios, fiz ameaças, que também não foram levadas em consideração: riu de tudo e zombou de mim. Também tentei introduzir-me no palácio; corrompi escravos e cheguei nos quartos. Entretanto, apesar de todos os meus esforços, não consegui chegar até a minha bem-amada.

– Tu és franco, Noureddin; tua sinceridade merece uma recompensa e terás aquilo que vens buscar. Far-te-ei ver uma coisa terrível: se tiveres a força de suportar a prova pela qual te farei passar, fica certo de que reencontrarás a tua felicidade de outrora. Dou-te cinco minutos para te decidires.

Esgotado esse tempo, Noureddin disse a Manouza que estava pronto a fazer tudo quanto ela quisesse para salvar Nazara. Então a feiticeira, levantando-se, disse-lhe: Pois bem! Segue. Depois, abrindo uma porta situada no fundo da sala, fê-lo passar à sua frente. Atravessaram um pátio sombrio, repleto de coisas horríveis: serpentes, sapos que passeavam gravemente em companhia de gatos pretos, os quais afetavam um ar de superioridade em meio a esses animais imundos.

IV

Na extremidade desse pátio havia uma outra porta, que Manouza igualmente abriu; e, tendo feito passar Noureddin, entraram ambos em uma sala baixa, apenas iluminada do alto: a luz vinha de uma cúpula muito elevada, guarnecida de vidros coloridos, formando toda sorte de arabescos. No centro da sala havia um escalfador aceso e, sobre este, num tripé, um grande vaso de bronze, dentro do qual ferviam todos os tipos de ervas aromáticas,cujo odor era tão forte que mal se o podia suportar. Ao lado desse vaso havia uma espécie de poltrona grande, de veludo negro, de aspecto surpreendente. Quem ali se assentasse desaparecia completamente, porquanto Manouza, nela se havendo acomodado,Noureddin a procurou durante alguns instantes sem conseguir percebê-la. De repente ela reapareceu e lhe disse: Estás ainda disposto? – Sim, respondeu Noureddin. – Pois bem! Assenta-te nesta poltrona e espera.

Tão logo Noureddin assentou-se na poltrona tudo mudou de aspecto, enchendo-se a sala de uma multidão de grandes figuras brancas, a princípio apenas visíveis e que depois pareciam de um vermelho sangüíneo ou lembravam homens cobertos de chagas sanguinolentas, dançando uma ronda infernal; e, no meio deles, Manouza, cabelos desgrenhados, olhos chamejantes, vestes esfarrapadas e uma coroa de serpentes na cabeça. Na mão, à guisa de cetro, brandia uma tocha acesa que lançava chamas, cujo odor assomava à garganta. Depois de haverem dançado um quarto de hora, pararam de repente, a um sinal de sua rainha que, para isso, lançara sua tocha no escalfador em ebulição. Quando todas essas figuras se dispuseram em volta do escalfador, Manouza fez aproximar-se o mais velho, reconhecido por sua longa barba branca, dizendo-lhe: – Vem aqui, tu que segues o diabo; tenho uma missão muito delicada para te encarregar. Noureddin quer Nazara e prometi que a entregaria a ele; é coisa difícil. Conto, Tanaple, com o teu concurso. Noureddin haverá de suportar todas as provas necessárias. Atua, pois! Sabes o que quero; faze o que quiseres, mas faze; tremerás se fraca///ssares. Eu recompenso a quem me obedece,mas infeliz daquele que não me fizer a vontade! – Serás satisfeita, disse Tanaple, e podes contar comigo. – Muito bem! Vai e age.

V

Mal acabara de pronunciar essas palavras e tudo mudou aos olhos de Noureddin; os objetos tornaram-se o que eram antes e Manouza achou-se a sós com ele. – Agora, disse-lhe, volta para casa e espera; eu te mandarei um de meus gnomos dizer o que deves fazer; obedece e tudo correrá bem. Noureddin ficou feliz com essas palavras e mais feliz ainda por deixar o antro da feiticeira. Atravessou novamente o pátio e a sala por onde havia entrado; depois ela o acompanhou até a porta externa. Tendo Noureddin perguntado se devia retornar, ela respondeu: – Não; no momento é inútil. Se for necessário eu to farei saber. Noureddin apressou-se a voltar ao seu palácio. Estava impaciente por saber se alguma novidade havia acontecido desde sua saída. Encontrou tudo no mesmo estado; apenas viu, na sala de mármore – sala de repouso de verão dos habitantes de Bagdá – uma espécie de anão de feiura repugnante, perto da piscina situada no centro dessa sala. Sua vestimenta era amarela, com bordados vermelhos e azuis; tinha uma corcunda monstruosa, pernas pequenas, rosto grosseiro, olhos verdes e estrábicos, boca rasgada até as orelhas e cabelos de um ruivo que podia rivalizar com o sol. Noureddin perguntou-lhe como chegara ali e o que vinha fazer. – Fui enviado por Manouza, disse-lhe, para te entregar tua amante. Chamo-me Tanaple. – Se és realmente o enviado de Manouza, estou pronto a obedecer às tuas ordens; mas apressa-te, aquela a quem amo está acorrentada e tenho pressa em libertá-la. – Se estás pronto, leva-me imediatamente ao teu quarto e te direi o que é preciso fazer. – Segue-me, então, disse Noureddin.

VI

Depois de haver atravessado vários pátios e jardins,Tanaple encontrou-se nos aposentos do rapaz; fechou todas as portas e lhe disse: – Sabes que deves fazer tudo quanto eu te disser,sem objeção. Usarás esse traje de mercador. Levarás um fardo às costas, contendo os objetos que nos são necessários. Quanto a mim, vestir-me-ei de escravo e conduzirei outro fardo.

Para sua grande estupefação, Noureddin viu dois enormes pacotes ao lado do anão, embora não tivesse visto nem ouvido ninguém trazê-los. – Em seguida, continuou Tanaple,iremos à casa do Sultão. Mandará dizer-lhe que tens objetos raros e curiosos; que se ele os quiser oferecer à sultana favorita,nenhuma huri jamais terá usado outros iguais. Conheces a sua curiosidade; ele terá vontade de nos ver. Uma vez admitido em sua presença, não terás dificuldade de apresentar tua mercadoria e lhe venderás tudo quanto levamos: são indumentárias maravilhosas, que transformam as pessoas que as vestem. Assim que o Sultão e a sultana os vestirem, todo o palácio os tomará por nós e não por eles: a ti pelo Sultão e a mim por Ozara, a nova sultana. Operada essa metamorfose, estaremos livres para agir à vontade e libertarás Nazara.

Tudo se passou como Tanaple anunciara: a venda ao sultão e a transformação. Após alguns minutos de horrível furor da parte do sultão, que queria expulsar os importunos e fazia um barulho medonho, Noureddin, conforme ordem de Tanaple, chamou diversos escravos e fez prender o sultão e Ozara como escravos rebeldes, ordenando que os conduzissem imediatamente à presença da prisioneira Nazara. Queria saber, dizia ele, se ela estava disposta a confessar seu crime e se estava preparada para morrer. Quis também que a favorita Ozara viesse com ele, a fim de presenciarem o suplício que iria infligir às mulheres infiéis. Dito isso, marchou, precedido do chefe dos eunucos, durante um quarto de hora, por um sombrio corredor, no fundo do qual havia uma pesada porta de ferro maciço. Tomando de uma chave, o escravo abriu três fechaduras e eles entraram num grande gabinete, comprido e da altura de três ou quatro côvados. Ali, sobre uma esteira de palha, estava sentada Nazara, com um cântaro de água e algumas tâmaras por perto. Já não era a brilhante Nazara de outrora: continuava sempre bela, entretanto, pálida e emagrecida. À vista daquele que tomava por seu senhor, estremeceu de medo,julgando que tivesse chegado a sua hora.
(Continua no próximo número)
R.E. , janeiro de 1859, p. 43