Polêmica
Sociedade Anônima do Espiritismo
(Terceiro artigo – Vide a Revista dos meses de agosto e setembro de 1869)

BREVES EXPLICAÇÕES

Lamentamos que em razão de um mal-entendido inconcebível ante a clareza das explicações dadas na Revista, algumas pessoas, aliás uma minoria em relação à generalidade dos espíritas, confundissem e considerassem como uma só e mesma
coisa a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas e a Sociedade Anônima do Espiritismo.

Como alguns dos nossos correspondentes nos pediram que os esclarecêssemos a respeito, apressamo-nos em satisfazer ao seu legítimo desejo e comunicar-lhes as reflexões seguintes, visando a definir a situação satisfatoriamente. Como todas as sociedades espíritas, a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, que não existe senão em virtude de uma simples autorização, ocupa-se pura e simplesmente, conforme o seu regulamento, de estudos psicológicos e morais. Persegue, por meios idênticos, o mesmo objetivo que as Sociedades de Lyon, Marselha, Toulouse, Bordeaux, etc. Numa palavra, ela se consagra unicamente ao estudo dos ensinamentos que são o objeto de seus trabalhos; adquire novos conhecimentos pelas comunicações que recebe dos Espíritos através dos médiuns, pelo exame sério que fazem seus membros cooperadores das questões da ordem do dia, e vulgariza a Doutrina pela admissão de ouvintes às suas reuniões. Sendo absoluto o seu desinteresse, seria um contra-senso acusá-la de exploração.

A Sociedade Anônima do Espiritismo é uma organização essencialmente distinta. Enquanto a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas é puramente local, ou, pelo menos, se restringe a algumas correspondências limitadas à província e ao estrangeiro, a Sociedade Anônima do Espiritismo vem a ser, através da Revista Espírita, um órgão de centralização quase universal. É uma sociedade comercial, é verdade, mas não há pessoa de boa-fé que, depois de analisar a sua constituição, não se convença de que o mais absoluto desinteresse e o mais completo devotamento presidiram à sua fundação.

Quando ainda se achava neste mundo, o Sr. Allan Kardec foi o primeiro45 a reconhecer, juntamente com alguns espíritas esclarecidos, que as condições da livraria ordinária tornavam impossível a vulgarização do Espiritismo nas massas por meio das obras que, em nossa opinião, ainda são os melhores agentes de propagação. Mas, para tirar as obras dos editores, para reuni-las numa única mão e chegar a fazer, num futuro mais ou menos distante, edições populares, seriam necessários, antes de tudo, capitais que uma pessoa isolada não poderia fornecer e uma organização que fizesse obras fundamentais, não mais uma propriedade particular, mas propriedade do Espiritismo em geral. É para chegar a esse resultado que a Sociedade Anônima foi fundada, e também para assegurar ao Espiritismo uma existência legal, inabalável, e recursos para o futuro.

Haveria, na verdade, má-fé e má vontade em ver nesse empreendimento tão pouco comercial quanto possível, outra coisa além de um meio de concentração e de difusão mais poderosa, além de um local destinado a reunir em feixes e a utilizar os esforços de todos os espíritas, esforços muitas vezes improfícuos, em razão do próprio isolamento da maior parte dos elementos ativos.

A Sociedade Anônima tem por objeto operações comerciais; é constituída sem fins lucrativos e pode receber 45 Vide a Revista de dezembro de 1868 e abril de 1869; os preliminares do catálogo da Livraria Espírita, etc. donativos destinados a alimentar uma parte do fundo de reserva. Mas, qual será o emprego dos recursos que poderão resultar dos benefícios capitalizados? Qual o seu objetivo e o de todos os que, compreendendo suas verdadeiras intenções, empenham-se em sustentá-la com o seu apoio moral e o seu concurso material? Basta tomar conhecimento de seus estatutos para dar-se conta.46

Longe de buscar o lucro, um ganho de que se beneficiassem os seus membros, ela pretende consagrar-se puramente e unicamente à vulgarização dos nossos ensinos por todos os meios legais, mediante os recursos que lhe chegarem, sejam quais forem. Quem poderia suspeitar de tais disposições e aí ver tendências à exploração?!...

A Sociedade tem administradores, empregados remunerados, pois, certamente, não acudirá a ninguém a idéia de que se possa consagrar seu tempo e suas faculdades a um trabalho qualquer sem direito a esperar uma justa remuneração. Como, antes de tudo, desejamos que a luz se faça e que a verdade seja conhecida, julgamos um dever comunicar a todos essas poucas reflexões.

A Sociedade Anônima do Espiritismo é, pois, uma coisa essencialmente distinta da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, tanto por sua organização, quanto pelos seus meios de ação; mas se as duas sociedades marcham com o mesmo objetivo por meios diferentes, é perfeitamente evidente que excelentes resultados para o Espiritismo em geral serão a conseqüência de um entendimento cordial e de relações benévolas entre elas. Ora, essa boa harmonia, que deve existir entre todos os que desejam concorrer para o progresso do espírito humano, jamais foi 46 Vide a Revista de setembro de 1869 e os estatutos da Sociedade Anônima do Espiritismo, brochura in-12, preço: 1 fr.; Livraria Espírita, 7, rue de Lille, Paris. perturbada. As boas relações que existiam entre a Revista Espírita e a Sociedade Parisiense, anteriormente à criação da Sociedade Anônima, não deixaram de existir depois que a última foi fundada. A Sociedade Anônima, como o fazia o redator da Revista, julga um dever entregar à Sociedade de Paris os documentos que possam
interessar aos seus trabalhos, recebendo, com a mais viva satisfação, as comunicações, estudos morais, documentos da Sociedade de Paris que lhe pareçam dever interessar ao Espiritismo em geral, e que ela insere em tempo hábil em sua Revista, a fim de os levar ao conhecimento de todos.

Há, entre nós, alguns dissidentes, alguns descontentes? Ignoramo-lo e não queremos saber, porque somos de opinião que o interesse particular deve apagar-se diante do interesse geral e que, ante o objetivo a que se propõe o Espiritismo, as animosidades individuais devem ceder lugar às questões de princípios. Os homens são falíveis e podem enganar-se, mas quando concorrem para o grande movimento regenerador, pensamos que os espíritas não haverão de preocupar-se senão do bem comum, da caridade, da fraternidade e da tolerância, que devem presidir a todos os trabalhos de uma filosofia que tem por divisa: “Fora da caridade não há salvação.”

Soubemos, igualmente, que alguns dos nossos correspondentes se queixam da tibieza da Revista em reproduzir as instruções emanadas de grupos e de centros, mesmo os de certa importância para o Espiritismo. Não tememos confessar que, se agimos assim, foi porque, desejando antes de tudo permanecer na via do mestre, deveríamos, para não censurar diretamente os ataques que não podíamos sancionar, nos limitar a protestar pelo silêncio contra uma maneira de agir que, se adotada na sua generalidade, poderia atirar o Espiritismo fora da direção traçada pela mão prudente do Sr. Allan Kardec.

Por sua natureza essencialmente filosófica, o Espiritismo deve, em todas as circunstâncias, abster-se de tratar as questões religiosas dogmáticas e, sobretudo, abordar o terreno inflamado da política. Constatamos com pesar que alguns espíritas, felizmente uma pequena minoria, têm respondido, com teimosa persistência e sem piedade, aos violentos ataques de que fomos e ainda somos o objeto. Vemo-los com tristeza perseverarem numa linha de conduta que não podemos aprovar. Deixemos aos outros a tarefa de apontar os abusos e de os combater pela palavra e pela imprensa. Nossa missão não é destruir, mas edificar; tratemos de fazer melhor do que os nossos adversários e seremos estimados e apreciados. Que outros empreguem a violência e a crítica acerba; nossa única arma deve ser o espírito de conciliação e de persuasão.

Muitas vezes nos perguntaram por que não respondíamos aos ataques de que fomos objeto; é que, a tal respeito, partilhamos completamente a maneira de ver do Sr. Allan Kardec47. Como ele, não pensamos que o Espiritismo seja atingido pelas diatribes e acreditamos que a melhor refutação a lhes fazer é o silêncio, não devendo o Espiritismo preocupar-se em responder a eles senão multiplicando a difusão de seus ensinos e fazendo o maior bem possível.

Por que abandonaríamos um método que, até aqui, sempre nos foi salutar? Não é a nossa Doutrina, é o Espiritismo de fantasia, o Espiritismo imaginado pelos nossos adversários que é atacado nos escritos que nos apontam. Deixemo-los bater no vazio e não demos importância a zombarias que, não se dirigindo ao verdadeiro Espiritismo, não lhe podem fazer sombra.

Em vez de perder nosso tempo e consumir nossas forças em vãs disputas que divertiriam o grande público, unamonos, ao contrário, para que a filosofia espírita cresça e se popularize pelos nossos atos, pelos nossos trabalhos perseverantes.

47 N. do T.: Vide a Revista Espírita de novembro de 1858: Polêmica Espírita.
R.E. , novembro de 1869, p. 446